sexta-feira, 8 de abril de 2016

Canone Inverso – Paolo Maurensig

Obsessão saudável ou... loucura?

            Faz parte do egoísmo nosso de cada dia pensar que somente pessoas especializadas em algum determinado serviço podem executá-lo bem. Há exceções, claro, mas comumente sentimos um certo desassossego ao ver pessoas com dois trabalhos muito diferentes entre si. Carlos Drummond de Andrade era funcionário público e poeta; Bernhard Schlink é advogado e escritor; Guimarães Rosa era diplomata e escritor; e a lista segue, bem longa. Contudo há algo nas artes que faz com que as associemos como frutos diferentes da mesma árvore. Por isso, não deveria causar desconforto que um músico e restaurador de instrumentos musicais tenha produzido romances. E dentre eles, um belíssimo romance.



            Paolo Maurensig, depois de passar por uma infinidade de experiências com diversas ocupações, decidiu empunhar uma pena e escrever romances. Seu primeiro “A Variante Lüneburg” (Companhia das Letras, 1994) fez um certo sucesso comercial e ajudou a popularizar o nome do escritor na Itália e arredores. Porém foi em 1996, com o lançamento de “Canone Inverso” (ainda inédito no Brasil) que Maurensig atingiu sucesso no mundo todo, um sucesso modesto mas estável.
            O personagem central de Canone Inverso é um violino antigo, um instrumento de fino trato, com uma marca inconfundível: o desenho de uma pequena cabeça humana no seu corpo, uma marca que vai ajudar a reconhecer o violino durante a leitura. A trama é um tanto quanto complicada, mas não excessivamente.
            Um homem anônimo compra o dito violino em um leilão em Londres por uma quantia razoavelmente alta. No dia seguinte, um outro homem aparece no hotel do anônimo e pede para ver o violino. O comprador anônimo permite que o homem veja o violino, se emocionando ao relembrar acontecimentos do  passado. O homem então começa a narrar ao anônimo um encontro que teve com um músico itinerante em Viena, anos antes. O músico itinerante – chamado Jenő Varga –, um tipo de cigano de um vilarejo húngaro, é um prodigioso violinista. E Deste ponto em diante somos arremessados para dentro do relato da vida de Jenő. A estrutura do romance é como o sistema de Matrioshkas, as bonequinhas russas que ficam uma dentro da outra e dentro da outra e dentro da outra: temos um plano inicial – o agora, com o anônimo que acabou de comprar o violino e é visitado pelo outro homem –, passando para o plano onde o homem que visita o anônimo conta a história de como conheceu esse excelente e excêntrico violinista num bar de Viena, para a seguir vermos os acontecimentos pelos olhos do próprio Jenő Varga – sua infância, seus estudos no prestigioso porém severo Collegium Musicum, seu amor imutável e distante pela solista Sophie Hirschbaum e sua amizade pelo colega Kuno Blau. O livro, em suas duzentas páginas trata de temas como a imortalidade e a busca pela excelência na arte. No final – um tanto quanto brusco, diga-se de passagem – somos expostos a uma reviravolta surpreendente e uma conclusão um tanto quanto inesperada.
            Paolo Maurensig poderia ser um músico que também é um escritor, mas ao que tudo indica, ele está mais para um escritor que também é músico. Seus temas não se prendem à música. A variante Lüneburg, por exemplo, é sobre o xadrez e tudo o que a paixão por este jogo pode acarretar.


            Canone Inverso recebeu sua versão cinematográfica pelas mãos do também italiano Ricky Tognazzi. O filme foi lançado em 2000 e não é de todo ruim (recebeu vários prêmios), apenas não segue quase nada descrito no livro. Trilha sonora do über-fantástico Ennio Morricone e Gabriel Byrne no elenco. O filme se passa na Tchecoslováquia (ainda que no livro boa parte da ação se passe na Áustria) e a trama do filme gira em torno da Primavera de Praga e do distinto violino. Ou pelo menos deveria ser assim. O filme foca na relação entre Jenő e Sophie – Ah, a sétima arte! –, com destaque para cenas de amor flamejante entre os dois. Lembra bastante as três porcarias que fizeram "baseadas" no Solaris, do Lem, onde os diretores se preocuparam tanto em mostrar a relação entre Kris e Harey que não se prestaram a mostrar nada mais. Não é à toa que quem viu os filmes depois de ter lido o livro não entendeu por que motivo eles tem o mesmo nome.
            O Livro deixa uma agradável sensação de aprendizado e deixa também temas para discussão interna (obsessão versus obstinação, imortalidade versus vida simples, amizade versus competição, sonho versus realidade), sem falar que sua leitura é prazerosa e interessante, mesmo nos momentos mais intrincados da narrativa. O tom brando e um tanto quanto melancólico com que a história do século XX segundo um violinista húngaro, bem como sua solidão, que vai sendo transmitida aos demais personagens durante a leitura, ecoa a solidão de todo o ser humano, mesmo a mais profunda, e nos atinge.
            Um belo livro que merece seu lugar nas livrarias do Brasil.


Ricardo M. 09/Abril/2016 (lido em inglês, espiado em italiano)