terça-feira, 26 de agosto de 2014

Antologia do Conto Húngaro - Introdução de Guimarães Rosa

Tão longe, tão perto

A primorosa apresentação de João Guimarães Rosa para o livro “Antologia do Conto Húngaro” faz com que sintamos que a Hungria é uma espécie de paraíso ao alcance da mão. Fala-nos de sua comida, suas bebidas - o tokaji, delicioso néctar magiar - seus campos, florestas, rios e montanhas; sua língua - que, dizem ser tão difícil que é a única respeitada pelo diabo -, com suas inflexões, casos sem fim, e sonoridade inconfundível; sua gente amistosa e amante do bem viver, do que é verdadeiramente bom.


Os trinta contos que compõem essa coletânea foram traduzidos pelo organizador, Paulo Rónai, alguns do francês, a maioria diretamente do Húngaro, e apresentam todo um panorama do distante e desconhecido país.

Um a um, os contos vão desenrolando frente aos olhos do leitor um mundo de cores aparentemente distintas das que conhecemos (ou pensamos conhecer), mas que na realidade tem tons muito semelhantes aos nossos. A "Pequena Palavra" de Guimarães Rosa funciona como um mini-curso sobre a cultura na qual estamos prestes a mergulhar.

Percorrendo um escopo de aproximadamente cem anos de escritos em língua húngara, esta antologia apresenta uma grande variedade de tipos e de estilos de narrativa. Do suspense à aventura, do surreal ao verossímil, do cômico ao trágico, os contos vão delineando as marcas da literatura moderna e prendendo o leitor entre suas páginas, entre suas linhas, sem dar a ele chance de escapatória. Um viajante, num trem, travando diálogos inteiros apenas com “sim” e “não”; os dilemas de uma professorinha; os insuspeitos deleites da mais pura pobreza em família. Ao fim da leitura, a descoberta: uma parte de nós mesmo passa a pertencer eternamente à Hungria, aos seus cidadãos, ao seu ininteligível idioma.

Volvendo à máxima reguladora que diz que quanto mais particular é um relato, mais universalmente ele tende a ser compreendido, ao término de tão edificante leitura nos damos conta de que, enfim, não éramos, assim, tão diferentes.

Um ótimo livro que merece ser lido e relido tantas e quantas vezes for possível.


Ricardo Machado 11/11/2009

A Flor do Sal - Rosa Lobato de Faria

Romanceando um romance português

O romance "A Flor do Sal" é um romance histórico e, ao mesmo tempo, não é um romance histórico. Explico: a obra remonta ao passado lusitano heróico do século XV, porém usando-o como contraponto do Portugal atual, do século XXI.




A autora promove uma construção romanesca que se firma sobre duas narrativas. Ela nos narra a história do navegador português Afonso Sanches, que teria chegado à América doze anos antes de Cristóvão Colombo, mas que, por ordem do rei D. João II, teve de calar-se por estar em curso a famosa querela ibérica sobre a supremacia dos mares - disputa esta que culminaria posteriormente com a elaboração do Tratado de Tordesilhas, dividindo as terras recém-descobertas do Novo Mundo entre os dois reinos.

No entanto, sua história não nos é contada diretamente: como uma tradução indireta, é por meio da escritora Guiomar que temos notícias das aventuras e dos dissabores do navegador, cujo espírito materializa-se todas as noites para a escritora, a fim de narrar-lhe sua trajetória e ter seu nome escrito na história. Esta passa então a escrever um romance sobre Afonso Sanches, participando a nós, leitores, o processo de elaboração da obra. Por conseguinte, temos, da “outra ponta” do romance, a história da própria Guiomar, que nos conta do andamento de seu livro, das pesquisas, da futura publicação, bem como de seu romance com o irmão gêmeo, Lourenço. Ambos se consideram a metade perdida do outro e vivem com ardor essa paixão proibida, desfrutando, de um lado, de toda a felicidade que ela lhes proporciona, mas também arcando, do outro, com todo o sentimento de culpa e transgressão que dela advém.

A autora nos apresenta, portanto, duas histórias diferentes, em capítulos alternados: uma é o romance (a história de Afonso Sanches); a outra é o romance da feitura do romance (a história do andamento do livro sobre o navegador e do amor controverso entre Lourenço e Guiomar). Entretanto, apesar de distintas, as duas narrativas se constroem numa perspectiva de complementaridade, na medida em que uma se realiza a partir da outra. Isso se dá pelo fato de a narrativa de Afonso Sanches ser uma criação de Guiomar, mas que se desenvolve a partir do depoimento de uma pessoa real. Com efeito, há indícios históricos de que tenha existido um navegador português de nome Afonso Sanches que teria chegado à América antes de Colombo. No entanto, há pouquíssimas informações a seu respeito, de modo que Guiomar tem de se servir da ficção para preencher as lacunas da história.

Forçada, portanto, a inventar-lhe a vida, Guiomar faz uso de diversos elementos de sua própria história para conceber desde a personalidade até os amores do navegador. No entanto, ela mesma é também uma personagem ficcional, de modo que tanto a narrativa sobre Afonso Sanches quanto a narrativa sobre o andamento do livro sobre o navegador são criações fictícias. Trata-se da famosa metaficção: aquela que identifica conscientemente seus próprios mecanismos, a referência da referência. Em nenhum momento ela nos permite esquecer de que estamos diante de uma obra ficcional, embora se esforce, paradoxalmente, em fazer-nos crer no contrário.

"A Flor do Sal" de Rosa Lobato de Faria é um convite ao leitor a empreender uma grande viagem: uma viagem ao passado e, sobretudo, à (re)construção deste passado. Amparados pelo leme seguro de seu lirismo refinado e sutil, navegamos, sob o comando do destemido navegador Afonso Sanches, pelos mares do passado em busca de novas terras para o presente, novas paisagens jamais vislumbradas pelos olhos da história. E ao final da travessia, assim como Afonso Sanches, deparamo-nos, também nós leitores, com a outra ponta do mar: as paragens do século XXI, em que vivem Guiomar e Lourenço, portugueses dos nossos dias, figuras de um povo que vive ora em terra firme, mas eternamente errante, eternamente a navegar pelas águas da memória, em busca das aventuras e glórias das distâncias do passado.


Filipe Kepler 12/07/2011     

O Complexo de Portnoy - Philip Roth

O melhor caso que nem Freud resolveria

1969. Quem diria que esta bíblia da mentalidade judaica, acrescida de uma potente dose de sexualidade, beirando a pornografia, poderia ter sido composta em fins dos anos 60. A verdade é que o livro é tão atual e trata de temas tão cotidianos de uma forma tão vívida que passa a impressão de que foi escrito na noite de ontem.




Alexander Portnoy, o herói retratado, é um bem-sucedido advogado da cidade de Nova Iorque e que hoje está sentado o divã de seu analista, contando sua história. Todos seus temores, experiências dignas de serem relatadas e problemas, talvez sem solução, nos são expostos em duzentas e cinqüentas páginas do melhor e mais efetivo bom humor.

Portnoy vive numa eterna contradição consigo mesmo. Possui fortes impulsos étnicos – amor e orgulho judeu – e desejos sexuais extremos que surgem de maneira pervertida, mas que acabam por fazer com que ele desenvolva um forte sentimento de culpa. Seu caráter devasso faz dele uma peça sem utilidade num ambiente de repressão em alta escala – os Estados Unidos do auge da revolução social e sexual –, um inválido numa terra de gente que precisa parecer sadia de corpo e alma.

A narração superfluida de Roth nos embala, nos comove e, principalmente, nos faz rir com o monólogo lamentoso e hilário do personagem principal, com suas desventuras em sua vida cheia de acontecimentos, encontros e experiências que ele mesmo falha em perceber que teve.

A obra fala de um advogado judeu americano dos anos 60. Muito bem. Porém, após a leitura desta, obra olhe-se no espelho e veja se não há sobre sua própria face, cobrindo seu rosto como uma máscara, a face de Portnoy. Afinal de contas, não somos assim tão diferentes dele.

Altamente recomendado.


Ricardo Machado 14/08/2011 (lido em português)

O Tambor - Günter Grass

Oskar Matzerath, Emissário do Caos

No ano de 2009, comemora-se o quinquagésimo aniversário do grande romance de estreia de Günter Grass, "O Tambor". Publicado originalmente em 1959, como primeira parte da "Trilogia de Danzig" (Danziger Trilogie), o livro gozou de enorme repercussão no meio literário da época, angariando de imediato admiradores fervorosos, bem como opositores irados, e transformou-se em um dos mais importantes romances da literatura do pós-guerra.




O narrador é o excêntrico Oskar Matzerath. Em 1952, interno de um hospício e dispondo de todo o tempo do mundo, Oskar decide escrever suas memórias. Assim, pede a seu enfermeiro, Bruno, que lhe traga 500 páginas de papel “virgem”. Com o espesso bloco na mão e a caneta-tinteiro devidamente cheia, Oskar começa sua narrativa, que tem início no cair da tarde de um dia de outubro, em um campo de batatas – data e local da concepção de sua mãe. À parte deste episódio insolente, sua própria história, no entanto, inicia-se apenas mais tarde, em 1924, quando vem ao mundo com os “olhos abertos”, isto é, com o intelecto já plenamente desenvolvido. Uma vez que seu crescimento é interrompido aos 3 anos de idade por conta de um acidente (ainda que ele afirme haver optado parar de crescer, sendo o acidente mera encenação), Oskar permanece eternamente uma criança aos olhos da sociedade e dispõe da “perspectiva de baixo” (Perspektive von unten) para observar o mundo dos adultos. Por ocasião de seu aniversário de 3 anos, recebe de presente um pequeno tambor, o qual virá a ser seu companheiro de toda a vida e de cujo rufar, à guisa das musas, ele se servirá para rememorar e narrar os acontecimentos do passado.

Através dos “olhos claros” do mefistofélico Oskar Matzerath e de seu relato episódico, fragmentado, Grass nos apresenta um panorama histórico que se estende desde o período entre-guerras, passando pela ascensão do nacional-socialismo, até chegar à Alemanha dividida de pós-1945. A partir do microcosmo da pequena burguesia alemã e polonesa de Danzig, o autor expõe com ironia e crueza brutais a mentalidade estreita e alienada do povo alemão do início do século: o descaso, a ingenuidade e, mais tarde, o fervor cego com que este abraçou o nazismo e do qual depois se viu cativo.

Tachado na época de sua publicação de sacrílego, obsceno, e mesmo pornográfico, "O Tambor" é considerado hoje um marco na história da literatura alemã. Servindo-se dos moldes do romance de formação – gênero este tipicamente alemão, que tem no "Wilhelm Meister" de Goethe seu canônico exemplar –, Grass desconstrói, subverte, deturpa, numa palavra: reinventa o gênero, ampliando os horizontes literários e estéticos da época de maneira inaudita. Ao contrário de Goethe, seu herói não se desenvolve ou amadurece ao longo de sua jornada. Oskar já nasce pronto, não muda, não cresce, não melhora, de modo que sua história serve apenas para confirmar aquilo que ele sempre soube ser: o dos “olhos abertos”, o provocador, observador inescrupuloso da improbidade humana, força demoníaca a desagregar tudo o que toca. Para Oskar, nada é sagrado ou digno de reverência: zomba da Igreja, desafia a lei, ri-se da moral. Oskar é a aberração que se recusa a compactuar com a sociedade, mantendo-se adulto em corpo infante, a fim de minar-lhe as bases; que despreza a humanidade e o expressa ao fazer de si próprio uma caricatura grotesca, ao mesmo tempo amada e odiada – é o espírito da contradição, o anão maldito cujo canto estilhaça vidraças e cujo tambor escarnece da própria existência.

Cinquenta anos após sua publicação, "O Tambor" de Günter Grass, com seu estilo barroco e sua profunda reflexão histórica, conduzida a partir de uma perspectiva rasteira permeada de cinismo, mostra-se semelhante a seu anti-herói: parece recusar-se a envelhecer. Incansável, Oskar segue rufando seu tambor, instilando o caos por suas páginas e lembrando-nos de que seu canto macabro ainda se mantém assustadoramente moderno.

Filipe Kepler 21/06/2011 (lido em português e alemão)