sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O Mundo se Despedaça - Chinua Achebe

Chinua Achebe e a África despedaçada

     “O Mundo se Despedaça” ("Quando Tudo se Desmorona" em Portugal e Things Fall Apart no original) é um romance que conta duas histórias entrelaçadas, porém centradas no mesmo personagem, Okonkwo.




Na primeira, em uma aldeia nigeriana do século XIX onde o equilíbrio, a ordem e os costumes vinham sido mantidos os mesmos por gerações sem conta, vamos vendo através dos olhos do chefe da tribo a desestabilização da antiga paz em detrimento de novas maneiras de pensar e de agir. Testemunhamos Okonkwo, o homem forte, o guerreiro poderoso da aldeia da etnia Igbo (Ibo, no romance) entrar em choque com os preceitos tribais em que vive, simbolizando a eterna luta entre o grupo e o indivíduo.

Na segunda, um relato tão moderno quanto o tom de antigüidade da primeira história, vemos a chegada do homem branco com sua religião, sua educação, suas leis, sua política e sua língua. A imposição é dura aos olhos de Okonkwo, porém branda e até mesmo desejável aos olhos de muitos membros da tribo. Contudo, a inexorável invasão branca mostra a devastação causada pela cultura européia no seio da África, num desenvolvimento desenfreado e agressivo, incutindo no livro um ar de irremediável tragédia.

Okonkwo luta contra todas essas mudanças que cercam sua aldeia. Entretanto, sua gente aprecia a chegada das novidades, como a nova religião, que prega um único deus, e que aceita de bom grado em seu meio os até então marginalizados pela sociedade Ibo: mulheres, jovens sem rumo na vida e até mesmo os párias da tribo. Até mesmo o primogênito de Okonkwo, Nwoye, adere ao novo culto.

O romance, com seu apelo sensível, que parece vir das profundezas da própria terra, nos toca e nos faz pensar. O indivíduo versus a sociedade, o antigo e imutável versus o novo e desconhecido. Ambas histórias, em perfeita harmonia, vão descrevendo a vida humana, suas motivações, suas misteriosas compulsões, seus anseios e frustrações, pintando na tela da história o quadro agridoce da existência neste mundo.

Escrito em inglês em 1958 e já traduzido para mais de quarenta idiomas, a obra de Chinua Achebe é freqüentemente considerada como a mais importante da literatura africana, por ter dado início a literatura africana moderna e por ser o relato monumental, duradouro e fiel de uma sociedade em transição, escrito por alguém de dentro dela. Dois anos depois, teríamos a independência da Nigéria. Graças à abertura possibilitada por Achebe, a literatura africana – e mais especificamente a nigeriana – contam com muitos e prolíficos autores, como o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1986, Wole Soyinka e, atualmente, a também nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que goza de grande fama e boa reputação devido aos seus romances de grande vendagem.


Ricardo Machado 27/9/2014 (lido em inglês)

domingo, 21 de setembro de 2014

Pastoral Americana - Philip Roth


Um manto sobre a deflagração

        Neste livro de 1997, Nathan Zuckerman, o alter ego de Philip Roth, entra mais uma vez em cena para recontar a história do seu ídolo de infância Seymour “O Sueco” Levov.



      Desde o início vemos que Nathan vai tecendo essa homenagem ao homem que descrevia muito bem o que se chamou de “the greatest generation", "a melhor geração”. Louro, alto, atlético, estrela do basquete na escola, peça fundamental no time de beisebol e ás do time de futebol americano, Seymour Levov era a prova viva da conquista através da perseverança e do trabalho duro de todos os imigrantes – mas principalmente dos judeus – que vieram de todas as partes para tentar a vida na América.

         Com sua capacidade esportiva, o Sueco poderia ter sido um atleta de carreira estupenda e fama contundente, porém é influenciado pelo pai a deixar o esporte de lado e dar continuidade ao negócio da família. Seymour se forma e passa a trabalhar integralmente com o pai na fábrica de luvas para senhoras, dando o melhor de si e aprendendo tudo que se pode saber sobre o couro, o trabalho em um curtume e a confecção de luvas.  

        Contudo, esse é apenas o prólogo da pastoral, que vem, como um manto de campos, flores, animais e vida bucólica, cobrir o caos que se vai formando na vida do Sueco.

       A narrativa demora um pouco para tomar forma. Nathan passa um bom número de páginas falando sobre o ser velho, doenças, mortes e conversas entre amigos da mesma idade. Até que surge o Sueco, e Nathan começa a nos contar a parte de sua vida que é publicamente conhecida, e que mal nos faz erguer uma sobrancelha, tal é a mediocridade de sua existência: o super esportista que se tornou empresário, nada mais. A superficialidade aparente da vida de Seymour é tão marcante que faz com que Nathan, ainda que curioso a respeito do ídolo, perca um pouco do respeito e interesse que outrora possuía. Isso até escritor começar a investigar sobre a vida do antigo herói, em busca de algo mais do que sua perpétua serenidade e bondade sem limites, e se depara com o inesperado. Perguntas sem respostas, fatos que parecem não se conectar com nada concreto. Teria o Sueco se casado com a Miss New Jersey para contrariar o pai e mostrar independência, ainda que uma única vez? Seria um casamento feliz? Teria ele criado no seio de sua própria família alguém capaz de um ato de terrorismo?

            “Pastoral Americana” é uma obra densa que trata de inúmeros temas, tais como a revolução sexual e social dos anos 60, a Guerra do Vietnã, o caso Watergate, o lançamento do filme Garganta Profunda, a política norte americana, a imigração (principalmente dos judeus) e a geração legitimamente americana, entre outros. Roth, na voz de Nathan e de Seymour, recheia o relato da vida do Sueco com doses de filosofia, bom humor e crítica social e política, criando uma narrativa cheia de ondulações onde os altos são bem altos e baixos, muito baixos.

            Ao longo das quatrocentas e oitenta páginas da versão brasileira, o leitor vai sendo colocado frente a frente com a mesma situação inúmeras vezes, sendo que cada repetição é apresentada sobre uma nova perspectiva, o que auxilia a desvendar os mistérios por trás da ascensão e queda do Sueco. As descrições ricas em detalhes sobre o trabalho na fábrica e a confecção de luvas tornam a rotina do Sueco uma parte de nós mesmos, parte essa que, após certo número de páginas, torna-se tão necessária quanto os próprios personagens.

           A obra foi listada pelo The New York Times como sendo um dos melhores escritos em ficção americana dos últimos trinta anos e está na lista com a cem maiores obras em língua inglesa do século XX. A obra recebeu o Prêmio Pulitzer em 1998. Trata-se de um romance com um apelo visceral, que, uma vez absorvido pelos olhos, se aloja em nosso âmago, para de lá não mais sair. Um romance grandioso na sua escrita e no seu poder de fazer pensar e influenciar ideias.


Ricardo Machado 18/08/2014 (lido em português e inglês)


domingo, 14 de setembro de 2014

Istambul - Orhan Pamuk

Pamuk e Istambul: um caso de amor e arte

            Desde minha leitura de “Neve”,  que muito me agradou e que estimo como um belo, trágico exemplar de “romance político” (se é que tal gênero existe), tomei interesse pelo Prêmio Nobel turco Orhan Pamuk. Seus comentários inteligentes em entrevistas, bem como a perseguição e censura reincidentes do próprio país contra seu grande escritor instigaram-me ainda mais em conhecer melhor sua vida e obra.




            Por essas razões, decidi-me por ler “Istambul”, obra de caráter, em parte, autobiográfico. Digo “em parte” porque “Istambul” é mais do que mera autobiografia. Pamuk, apesar de seu sucesso internacional, jamais abandonou sua cidade natal e continua a viver em Istambul até hoje. Por conseguinte, ao recordar sua própria história – a família, a infância, adolescência e maturidade - Pamuk também rememora inevitavelmente a história da própria cidade, com seus artistas, jornalistas, historiadores e poetas que, de diversas maneiras, influenciaram o escritor turco.

            Nessa relação entre cidade e autor é que jaz a beleza deste livro. Pamuk ama Istambul de todo o coração e sua paixão pela cidade se reflete nas belíssimas descrições de suas vielas abandonadas, suas mesquitas magníficas e suas antigas mansões que incêndios do passado riscaram da paisagem da cidade. Istambul salta das páginas com cor e textura vívidas, que prendem o leitor e compelem-no a também perambular e perder-se, já apaixonado, pelos caminhos misteriosos dessa cidade imersa em neblina, ao mesmo tempo fascinante e melancólica.

           Além de rememorar importantes acontecimentos na história de Istambul, Pamuk nos relata simultaneamente a saga de sua grande família. E que história! A relação conturbada dos pais, as brigas, bem como a amizade com o irmão mais velho, as aventuras criadas pela imaginação sem fronteiras do jovem Orhan – Pamuk põe em tudo e em todos um tom romanesco tão forte, que por vezes esquecia-me de que lia uma biografia. A história do menino tímido que gostava de pintar dá notas de romance de formação, mas não ao ponto de prejudicar o dueto real, vivido e sofrido, entre cidade e escritor.

            “Istambul” é deveras um belíssimo livro de memórias. Pamuk rememora com sensibilidade não somente sua história pessoal e familiar, como também a da própria cidade. Os caminhos do jovem Orhan e Istambul estão de tal maneira interligados que se confundem, criando um labirinto do qual emergem sucessivamente querelas familiares, história, infância, passado otomano, primeiro amor, arte... Seduzidos por uma narrativa leve, envolvente, descobrimo-nos logo perdidos pelas vielas, pontes cemitérios, lojas e ruínas desta cidade bipartida entre Oriente e Ocidente. A cada página, a cada esquina visitada, passamos a partilhar com seus habitantes da melancolia de Istambul, que tamanho fascínio exerceu sobre um jovem artista que perambulava suas ruas em busca de sua verdadeira vocação.


Filipe Kepler 14/09/2014 (lido em inglês)

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Caçando Carneiros - Haruki Murakami

Carneiros, consumismo e solidão

Caçando Carneiros foi lançado originalmente no Japão em 1982 e foi o romance do escritor Haruki Murakami que abriu os olhos do público para o início de algo grande. Cinco anos mais tarde, com o lançamento de “Norwegian Wood”, teríamos o que foi chamado Fenômeno Murakami.



 

O livro, traduzido para o português pela grande Leiko Gotoda, é narrado em primeira pessoa por um jovem publicitário – cujo nome jamais ficamos sabendo – de carreira enfadonha, mas que, como todo e qualquer japonês adulto, precisa suar muito a sua camiseta no emprego. Ele tem cerca de 30 anos, vive uma vida pacata e trabalha em Tóquio com um sócio, um velho amigo bêbado inveterado. Convive com sua ex-mulher e uns poucos amigos. Tudo aparentemente muito comum, até que sua situação muda: ele recebe uma carta e algumas fotos. E sua vida nunca mais foi a mesma.




Mais tarde, um homem misterioso visita o protagonista em seu escritório e, após uma longa conversa, o incumbe com a extraordinária tarefa de sair à caça de um carneiro com uma estrela nas costas, numa cidadezinha provinciana da distante região de Hokkaido, ao norte do Japão. O homem compartilha o fato de que o tal carneiro não é um animal comum, longe disso. Como se não bastasse, o misterioso visitante diz ao protagonista que, se ele não encontrar o carneiro dentro de um mês, a vida do jovem será arruinada. E assim, sem entender absolutamente nada sobre o que está acontecendo, e nem ao menos compreendendo porque fora escolhido, ele se lança em uma busca fantástica, atravessando o Japão para encontrar o único carneiro que pode trazer novamente algum sentido ao seu cotidiano. No caminho, ele acaba encontrando personagens peculiares: uma modelo de orelhas sedutoras, um grupo político com um chefe enigmático e, bem, um homem-carneiro. Nenhum dos personagens do romance possui nome, sequer o gato de estimação. Nessa jornada, nosso narrador se verá no lugar de um excêntrico detetive que, ao mesmo tempo em que recolhe pistas e tenta esclarecer enigmas, descobre um pouco mais sobre si mesmo.



  
Impressões sobre a leitura.
As primeiras páginas são carregadas de uma lentidão por vezes penosa. Nada acontece, nada dá a entender que algo vá um dia acontecer. São parágrafos e mais parágrafos de descrições, das mais variadas. Daí então você percebe que ninguém tem nome. Absolutamente ninguém. A trama começa a se desenrolar e você vê que marcas de produtos tem proeminência sobre nomes e sentimentos humanos. Mais algumas descrições. Nada faz sentido. Até que então tudo faz sentido. As primeiras páginas entediantes estavam introduzindo o ritmo do romance, preparando o leitor para o mundo que se descortina aos seus olhos: um mundo de ações calculadas, materialismo, consumismo, irracionalidade, fantasia e doses cavalares de tristeza e solidão. É um romance com cunho detetivesco e pós-moderno no qual sonhos, devaneios e a mais fértil imaginação tresloucada são mais cruciais do que provas ou pistas.
A narrativa possui um tom de mitologia e de peso histórico bastante atraentes. Menciona Gengis Khan e eventos de suma importância na história moderna, tudo imerso em mistério. O autor aqui sabe como criar personagens carismáticos com os quais acabamos por nos apegar. Ele também traça habilmente a personalidade de cada um deles e delineia magistralmente o rumo que cada um deles tem a tomar, controlando seus destinos e ajudando-os a redescobrir suas vidas.
Tal qual Kafka, Murakami, aqui, demonstra possuir a capacidade de unir o real e o inverossímil de maneira atraente e despertando a curiosidade do leitor. Ele põe à prova seu estilo único de contar histórias recheadas de absurdos visíveis e encontra o merecido sucesso pelo seu bem escrever.


Um dos grandes diferenciais da obra de Murakami com relação aos seus compatriotas é o fato de que seus personagens, apesar de imersos até o pescoço num mundo de fantasia, vivem no Japão uma realidade quase igual à nossa ou de pessoas de muitos outros países. Dão o melhor de si mesmos por suas carreiras, bebem demais, vagam por casamentos desfeitos, vivem vidas tortuosas. E tudo isso e muito mais sem um único quimono à vista, um único samurai a ser mencionado ou uma gueixa sequer. Trata-se do que alguns já chamaram de ocidentalização, o que já foi chamado de globalização e que, hoje em dia, é nada mais nada menos do que a unificação cultural através da influência dos meios de comunicação em massa, tema amplamente trabalhado em seus livros, mas que ainda é tratado como assunto à parte pela maioria dos autores nipônicos e principalmente pelos críticos literários daquele país.

Murakami é um autor que sabe muito bem como contar histórias imbuídas com o extraordinário. Mesclando situações banais com fatos inexplicáveis, ele guia o leitor por suas narrativas oníricas, num mergulho em seu universo único.



Ricardo Machado 08/09/2014 (lido em Português e Japonês)