quinta-feira, 9 de julho de 2015

Neve de Primavera - Yukio Mishima

Neve de Primavera: pintando contrastes

Em 25 de novembro de 1970, o Japão foi surpreendido pela morte de um de seus maiores ícones literários do pós-guerra, o escritor Yukio Mishima. Aos 45 anos de idade, Mishima cometeu seppuku (suicídio ritual) logo após a tentativa frustrada de incitar um golpe de Estado que teria por objetivo restaurar o poder ao imperador e impor a lei marcial. Segundo Mishima, esse seria o primeiro passo para reverter a trajetória de decadência moral e política do Japão desmilitarizado e ocidentalizado de pós-1945. O suicídio transformado em espetáculo público, a polêmica das motivações políticas de extrema direita do autor, bem como o caráter ritualístico de sua morte, estariam fadados a alimentar o mito em torno do nome de Mishima e a tornar-se motivo de elucubração da crítica por anos a vir. O fim que o escritor escolhera para a própria vida causou tamanha repercussão, que acabou por ofuscar a publicação do último romance a concluir sua ambiciosa obra prima, o panorama do Japão do século XX: O Mar da Fertilidade (1969-1971).




Mishima vinha trabalhando na obra desde 1964 e, até a data de sua morte, havia publicado já três romances, restando-lhe apenas a conclusão do último livro para encerrar o círculo. Mishima já havia inferido que poderia morrer depois que terminasse O Mar da Fertilidade, visto que não acreditava poder escrever nada superior; porém ninguém imaginaria que ele seguiria suas palavras à risca. Poucos meses antes de suicidar-se em novembro de 1970, Mishima terminara o manuscrito do obscuro romance A Queda do Anjo (1971), que viria a ser publicado no ano seguinte, encerrando assim a tetralogia.

Neve de Primavera (1969) é o primeiro romance da saga, publicado primeiramente em folhetim, entre os anos de 1965-67, e em forma de livro, em 1969. A obra narra a trágica história de amor entre Kiyoaki Matsugae e Satoko Ayakura e, paralelamente, explora os conflitos sócio-culturais do Japão em decorrência da onda de ocidentalização no início do século XX.

A ação se passa durante os primeiros anos do Período Taishô (1912-1926), época marcada pela decadência da antiga aristocracia e a ascenção dos partidos democráticos. Numa tarde de outubro de 1912, Kiyoaki Matsugae e seu amigo, Shigekuni Honda, conversam à beira de um riacho na suntuosa propriedade dos Matsugae, quando presenciam a chegada da hóspede Satoko Ayakura, a belíssima filha de uma família da alta aristocracia, acompanhada de sua tia-avó, a Abadessa do mosteiro de Gesshu.

Kiyoaki e Satoko, apesar de se conhecerem desde tenra infância, vivem numa relação de pretensa indiferença. Kiyoaki sabe do amor que ela lhe devota, porém ignora suas tímidas tentativas de aproximação e sente certo prazer narcisístico em menosprezar-lhe os sentimentos. Somente ao receber notícias do noivado entre Satoko e o príncipe Harunori e vislumbrar pela primeira vez a possibilidade real de perdê-la para sempre, Kiyoaki por fim toma consciência de seu amor por Satoko e decide lutar para reconquistá-la. Em segredo, os dois iniciam uma relação ilícita ao longo da qual hão de vivenciar o desabrochar ardoroso da paixão, porém também assistir às flores de seu sonhos morrer sob o jugo das convenções e normas sociais da época.




O caráter trágico que permeia Neve de Primavera é notório. A triste história de amor de Mishima - as tribulações de dois jovens apaixonados que lutam para ficar juntos, a despeito de todas as dificuldades - faz-nos lembrar eventualmente de Shakespeare. No entanto, ao contrário de Romeu e Julieta, no qual o ódio entre as duas famílias é o único fator a barrar o amor dos protagonistas, as causas para a tragédia em Neve de Primavera  parecem ser mais profundas. No início do romance, não só as duas famílias são a favor da união de Kiyoaki e Satoko, como inclusive encorajam a aproximação dos dois. A bem da verdade, a família de Satoko acabou por noivá-la com o príncipe Harunori tão-somente pelo fato de Kiyoaki nunca ter tomado a iniciativa em pedir a sua mão e por mostrar indiferença à possibilidade de ela casar-se com outro. Ao contrário da obra Shakespeariana, os próprios protagonistas parecem, inadvertidamente, impor barreiras à própria perspectiva de felicidade.

Da mesma forma, diversas situações de conflito entre os dois também se dão pelo fato de Kiyoaki e Satoko possuírem diferenças irreconciliáveis, que contribuem em boa parte para a tragicidade de sua história: Satoko é honesta quanto a seus sentimentos e tenta demonstrá-los, apesar de sua timidez; Kiyoaki dissimula os próprios sentimentos e age de maneira a encobri-los; Satoko é magnânima e paciente; Kiyoaki é caprichoso e intempestivo; Satoko acata, submissa, a decisão da família de casá-la com um homem a quem mal conhece; Kiyoaki rebela-se contra o pai, quando este o proíbe de interferir no noivado de Satoko; quando Satoko toma passos para se aproximar de Kiyoaki, este age de maneira a afastá-la; quando Kiyoaki tenta insistentemente encontrar-se com Satoko, ela lhe barra o caminho atrás de uma muralha de silêncio. Um parece ser o exato oposto do outro e, não obstante suas diferenças, ambos perseveram em sua tentativa inglória de ficar juntos.

A insistência de Mishima em aproximar duas personalidades opostas apenas para se deparar com a aparente impossibilidade de conciliação, não se dá ao acaso. A noção de conflito é pivotal no romance e reflete-se não só no relacionamento conturbado de Kiyoaki e Satoko, como também na relação ambivalente, na época, entre o Japão e o Ocidente. A fim de manter-se como uma potência econômica relevante no cenário mundial, o Japão se viu obrigado a render-se à tecnologia ocidental. Tal avanço tecnológico, no entanto, veio com um preço: ao abrir as portas ao Ocidente, o Japão também entrou inevitavelmente em contato com a cultura ocidental, o que resultou em mudanças na comida, indumentária, nos costumes e, em última instância, na cultura do país. Durante boa parte do século XX, o país lutou com as implicações sociais, políticas e culturais que daí advieram.




Como outros pensadores do século XX, Mishima preocupava-se com a situação da nação e ponderava sobre as conseqüências e o impacto que uma ocidentalização descontrolada teria sobre a identidade e tradição japonesas. Neve de primavera é o cavalete sobre o qual o escritor  escolheu pintar sua visão sobre o dualismo irreconciliável que permeou a sociedade japonesa do último século.

Tal dualismo se reflete, sobretudo, nas personagens que permeiam o romance. À parte das personalidades conflitantes de Kiyoaki e Satoko referidas acima, outras personagens nos dão mostras de viver divididos entre leste e oeste. O exemplo mais claro desse dualismo é o Marquês Matsugae, pai de Kiyoaki. Apesar de descender de uma antiga e estóica família de linhagem samuraica, o marquês fizera fortuna recentemente e adotara por completo o estilo de vida ocidental: veste-se sempre à moda européia, é conhecedor de vinhos e faz questão de que todas as refeições em sua casa sigam os modelos europeus de etiqueta. Todavia, a mansão principal de sua propriedade - na qual mora, sozinha, a avó de Kiyoaki com uma criada - é de estilo japonês. O marquês poderia tê-la reformado para seguir os padrões ocidentais; contudo, por reverência à tradição e respeito a sua mãe, Matsugae optou por manter a antiga casa e construir uma segunda casa no estilo ocidental, na qual mora com a família e o resto da criadagem. Da mesma forma, o enorme jardim que circunda a propriedade, apesar de ostensivamente ocidental, já foi palco de diversas representações do teatro japonês, bem como de uma apresentação de sumô por ocasião da visita do Imperador Meiji à casa dos Matsugae. O marquês orgulha-se por ser um dos poucos a ter recebido a família imperial em sua casa e ter-lhes oferecido uma recepção tradicional à altura. Percebe-se, portanto, que, a despeito de sua presumida "ocidentalização", o marquês mantém não só uma casa japonesa, como também valores genuinamente japoneses: é como se ele fosse ocidental por fora, porém tipicamente japonês por dentro.

Exemplo inverso de tal dualismo temos na casa de Shigekuni Honda, amigo de Kiyoaki. O austero juiz Honda e sua diligente esposa mantêm sua casa em tradicional estilo japonês, no que diz respeito a indumentária, refeições e, de maneira geral, móveis e decoração; no entanto o dia-a-dia da casa é de todo ocidental. O pai de Honda, quando jovem, passara alguns anos estudando Direito na Alemanha e compartilha da predileção alemã pela lógica e a ordem. Por conseguinte, mantém sua casa num regime de severidade e retidão, onde tudo tem de estar na mais perfeita ordem: todos os objetos da casa não só têm uma função, como atendem a um específico padrão de excelência. O mesmo se espera da criadagem: boatos, fofocas e quaisquer demonstrações de frivolidade são silenciados por um mero olhar do juiz. Ao contrário dos Matsugae, a aparência na casa de Honda é japonesa, enquanto o "interior" é notadamente ocidental.

Tal qual a neve tardia que se mistura com as flores a desabrochar na nova estação, Yukio Mishima nos oferece uma obra que logra unir o cavalete  narrativo do realismo inglês com as cores do lirismo japonês. O resultado é uma magnífica pintura de contrastes, que nos impressiona por sua observação histórica e nos desola com sua trágica história de amor. Finda a leitura, a sensação que nos fica é a de um estranho misto de enlevo e tristeza. Assim como o amor de Kiyoaki e Satoko, Neve de Primavera possui aquela espécie de beleza trágica, tão típica em Yukio Mishima -- a beleza de uma flor de cerejeira, que, cheia de cor, enleva-nos o espírito, enquanto despetala-se, devagar, diante de nossos olhos.

Filipe Kepler, 07/07/2015 (lido em inglês)