quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Ghostwritten - David Mitchell

O escritor anônimo em cada um de nós.

            Antes do sucesso estarrecedor do filme Cloud Atlas, baseado no romance homônimo, David Mitchell já fazia seus primeiros ensaios na arte de interligar histórias aparentemente desconexas.




            Em 1999, o então incipiente escritor inglês publicava Ghostwritten, um romance composto por episódios – ou contos, ou ainda trechos – onde cada personagem relata sua história. Um terrorista japonês, um garoto mestiço e órfão, um advogado envolvido em lavagem de dinheiro, uma velha chinesa em uma casa de chá, um espírito errante, uma ladra de objetos de arte, um ghost writer sem rumo certo na vida, uma doutora em física quântica e o DJ de uma rádio em Nova Iorque e um satélite consciente compõem este quadro de vida e morte, alegria e dor, sorte e azar, que reflete a passagem humana pela terra.
            Ao que tudo indica, há algo de atraente no estilo episódico de escrever para os jovens escritores. A primeira obra de ficção de James Joyce foi “Os Dublinenses”, que se trata de uma série de contos interligados. A primeira obra de Samuel Beckett, “More pricks than kicks”, também contava com uma estrutura em episódios.
Cada um dos capítulos recebe o nome de um lugar, começando por Okinawa e viajando em direção ao ocidente, passando pela Mongólia, a Irlanda e Nova Iorque. A narrativa tem início e encontra seu fim na voz de um dos perpetradores do ataque de gás Sarin no metrô de Tóquio, um ataque selvagem e insano, justificado com paz e espiritualidade, se torna uma das notas que vai dar origem aos demais tons do romance. Outra dessas notas é o crash econômico no sudeste asiático. Os mercados financeiros são vistos através dos olhos de um advogado trambiqueiro. A fortuna criada e destruída lá vai formar ondas de choque que cruzarão o globo passando pela China, a Rússia e Londres. Mais para o fim do livro, é introduzido um satélite com um computador dotado de inteligência artificial. Este aparato é capaz de controlar eventos mundiais, uma vez que cuida o planeta todo como quem observa um mapa em uma mesa. Este olho onipresente acaba por se tornar uma força onipotente.
Vários episódios representam verdadeiras obras de arte da prosa moderna. “Holy Mountain” é um pungente relato da China no século XX vista através dos olhos serenos de uma velha senhora que tem uma casa de chá ao lado da montanha. Seu estilo é altamente discursivo, saltando para frente e para trás na cronologia, sem que isso ponha em risco a linearidade ou crie ambiguidades.  O capítulo seguinte, “Mongolia”, é narrado por uma entidade sobrenatural que vive em mentes humanas, sem que seus hospedeiros jamais saibam de sua existência e sem que a própria entidade consiga descobrir qualquer coisa a respeito de sua própria natureza. O penúltimo episódio, “Night Train”, se passa no estúdio de uma emissora de rádio de Nova Iorque. Trata-se do denso diálogo entre o radialista e o satélite que tudo sabe e tudo vê. O DJ segue com sua conversa mole de apresentador desinteressado e o super-computador vai tentando aprender mais sobre a mente humana e como tomar decisões de vida ou morte. Enquanto batem papo, o mundo vai ficando passo a passo mais perto do apocalipse.
            Mitchell, que morou por um bom tempo no Japão, faz descrições da cultura, das crenças e de eventos ocorridos na Ásia, sem apelar para o exotismo descabido ou tendências orientalistas. “Tóquio” retrata um pouco da visão por vezes racista da população japonesa com relação aos que não tem sangue puramente nipônico. “Mongólia” trata das crenças populares e a da vida do povo Mongol nos dias de hoje. Escolhendo focar seus personagens na Ásia, Mitchell decide deixar de lado o muitas vezes repetido refrão do eurocentrismo ou as baladas que cantam as maravilhas que se passam nos EUA.
            David Mitchell faz referencias a outras obras em seu livro, mais claramente às “três leis da robótica” de Isaac Assimov, ao livro Wild Swans de Jung Chan e The Music of Chance de Paul Auster.  



            Alguns leitores podem não se adaptar – podem até mesmo se incomodar – com a mudança brusca de personagens, locais e costumes de um episódio para o outro. Contudo, ainda que se possa reclamar que Ghostwritten só não é perfeito por causa de sua estrutura episódica, não se pode, de maneira alguma, acusar a obra ou o escritor de falta perícia ou de criatividade. O romance se mantém intacto graças ao esforço intelectual que foi necessário para construí-lo, e não por causa de idéias interessantes vindas de outras obras e introduzidas por outros escritores. O tema “ghost writer” é a cola que vai manter unido todo o conjunto de episódios e guardar a trama para que ela não se dissolva em relatos inócuos. O ponto de vista que vai de um terrorista para um jovem órfão, para um advogado mau-caráter, para um DJ americano e para uma máquina que pensa é o cerne da trama e o que mantém o conteúdo íntegro. Do início ao fim do romance, o escritor fantasma vai mudando, porém a linha que vai sendo estendida por ele é o que permite que todos os elementos fiquem juntos e concisos.


Ricardo M. 03/fev/2016 (lido em inglês)