sábado, 1 de novembro de 2014

O Caçador de Pipas - Khaled Hosseini

Caçando um Futuro

Publicado em 2003, "O Caçador de Pipas" transformou-se logo num grande sucesso comercial, tendo vendido, apenas nos Estados Unidos, mais de sete milhões de exemplares. É o primeiro romance do jovem escritor afegão Khaled Hosseini. E é devastador.





A obra conta a história do jovem Amir e seu melhor amigo Hassan, filho do criado do pai de Amir. Os dois meninos vivem felizes na pacífica cidade de Kabul, onde se divertem soltando pipas. Hassan é o melhor "caçador de pipas" de Amir: é capaz de prever onde a pipa cairá sem sequer olhar, podendo recuperá-la mais rápido do que qualquer outro caçador. A amizade dos meninos é tão bela quanto incomum. Isso se dá não só pela diferença de classe que os separa, mas também pelo fato de ambos serem de etnias conflitantes: Amir é pachtun e Hassan, hazara. No contexto social em que se passa o romance, pachtuns e hazaras coexistem num regime de opressores e oprimidos, de modo que um rico menino pachtun manter uma relação íntima de amizade com um pobre menino hazara - este, além de tudo, filho de um criado da família - é não só incomum como mesmo improvável.

Tais conflitos e preconceitos étnicos, que dividem a sociedade afegã e estigmatizam a amizade de Amir e Hassan, confluem e personificam-se na figura de Assef, rapaz notoriamente violento e sádico, que ridiculariza Amir por se relacionar com alguém de raça inferior. Certo dia, motivado por vingança e crueldade, Assef ataca Hassan violentamente. Amir presencia o incidente de longe, mas, em parte por medo, em parte por outros motivos, nada faz para salvar o amigo. Consumido pela culpa, Amir não diz nada a seu pai sobre o incidente e passa a evitar Hassan, de modo que a amizade dos dois sofre uma cisão irreversível.

Vê-se assim que traição e redenção são dois motivos centrais no romance. Mesmo já adulto, Amir é incapaz de esquecer o ocorrido e vive em busca de uma forma de redimir-se de sua covardia no passado. É interessante notar o paralelismo que o autor estabelece entre o drama pessoal de Amir e o do próprio país: da mesma forma que presenciamos a infância idílica de Amir ruir e sua vida adulta transformar-se num deserto de culpa e remorso, vemos a monarquia afegã cair por terra e a paz de Kabul despedaçar-se com a invasão dos tanques soviéticos. As tardes ensolaradas e tranqüilas que os meninos passavam brincando no passado são substituídas pelos horrores da ocupação, as provações dos refugiados ao arriscar a emigração para o Paquistão e o início do extremismo Talibã. Hosseini interlaça o destino de Amir com o de sua terra de maneira brilhante, fazendo com que nós leitores soframos em dobro: não só pelo menino que perdeu seu melhor amigo, mas também por todos os afegãos que perderam seu país para a violência e a guerra.

Finda a leitura de "O Caçador de Pipas", a impressão que me fica é de pura perplexidade: primeiro, por não imaginar que um best-seller pudesse ser tão pungente e arrebatador em sua força poética; segundo, por não imaginar que uma obra como essa, que aborda temas como opressão política, conflitos étnicos, abuso e violência, sequer pudesse vir a ser um best-seller. No entanto, Housseini surpreende-me e mostra que é possível. Sua narrativa fluida e calorosa é capaz de transformar o cenário inóspito de um Afeganistão desconhecido no palco de uma dolorosa e comovente história de amizade, traição e redenção com a qual qualquer um pode identificar-se.

Ao fim e ao cabo, talvez a real impressão que me tenha ficado do romance é a de inspiração. O romance de Housseini é inspirado e, por isso, voa alto. Sua inspiração se ancora na certeza de que, a despeito de toda a violência e todo o sofrimento, ainda podemos entrever a luz da esperança a brilhar ao longe -- tal qual a pipa de um menino que, mesmo em meio a poeira, os escombros e a fumaça, ainda é capaz de alçar-se e tocar o céu azul.

Filipe Kepler 25/09/2014 (lido em português)