quinta-feira, 30 de março de 2017

O velho que lia romances de amor - Luis Sepúlveda

Quando heróis morrem

              O chileno Luís Sepúlveda, militante político, jornalista e escritor nas horas vagas, era amigo de Chico Mendes. Aquele, o brasileiro que morava na amazônia. Os dois se conheceram quando Sepúlveda estava trabalhando em uma pesquisa sobre o impacto da colonização sobre os índios Shuar, no Equador. Bons amigos.

              Chico Mendes estava mais preocupado com a flora e a fauna da amazônia. Queria que os animais fossem deixados em paz e desejava que a vegetação virgem continuasse assim. Porém não era tão fácil deixar a natureza em paz e ele precisava lutar para mantê-la intocada, pois madeireiros estavam estuprando a mata virgem, um campo de futebol por dia. Ele também queria proteger os seringueiros, que são pessoas que se contentam em raspar cascas de árvores até elas sangrarem uma seiva branca que mais tarde vai ser tornar borracha. A árvore não precisa ser derrubada, nem cortada ao meio, nem morre durante o processo. Anos depois ela pode ser reutilizada para o mesmo fim e os seringueiros se contentam com os poucos reais que esse trabalho insano e totalmente necessário para nossa vidas lhes são pagos. Caras legais, os seringueiros. Sabem usar a natureza sem destruí-la. Contudo tem os madeireiros. Os que se dão ao trabalho de ir até o meio do mato atrás de pau. Esses caras tem a faca e o queijo na mão.


              Muita gente não sabe, mas o corte de árvores é bom em alguns casos, ainda mais se a área necessita de revitalização ou faz parte de trecho de reflorestamento. Reflorestamento é isso de plantar árvores para ir cortar elas uns anos mais tarde e plantar novas mudas para repor as cortadas. O planejamento bem feito da extração de madeira desses locais elimina riscos de danos ao meio ambiente em até 99%. Muito bem, muito bom. Mas daí entram no jogo madeireiros, que cortam árvores raras, em locais protegidos e em quantidades enormes.

              Chico lutava contra essas pessoas. “Lutava”, do verbo “tentava dialogar”, “mostrar os erros”, “apontar novas saídas”. Os madeireiros, sem conseguir entender algo tão gentil e pacífico, acharam que lutar era no sentido de “atacar sem dó” e mataram Chico Mendes, com tiros de escopeta, em sua própria casa. O governo brasileiro fez pouco e demorou bastante para fazer. De certa maneira, pode-se dizer que os assassinos podem ser reconhecidos onde quer que vão e não sofrem retaliação por seus atos.

              Eis que o amigo de Chico Mendes, Luís Sepúlveda, estava trabalhando em um livro sobre o amigo seringueiro, sindicalista, ativista político e ambientalista brasileiro, que infelizmente, nunca pode ver a homenagem que lhe foi prestada. Chico foi morto em dezembro de 1988 e o livro foi lançado em 1989.


              O velho que lia romances de amor conta a história do velho António José Bolívar Proaño, colono de uma vila ribeirinha e conhecedor da selva amazônica. É um homem de sessenta e tantos anos que vivera um tempo com os índios Shuar e, por isso, conhece bem os caminhos da selva, sabe como caçar e pescar como ninguém na vila e está mais adaptado à selva dos que os demais moradores. Seu passatempo é ler romances de amor. Gosta de histórias tristes, de partir o coração, histórias que fazem chorar e deixam o coração apertado. Ele degusta esses romances como quem degusta um bom vinho, lentamente, gole a gole, palavra por palavra, repetindo trechos que gosta e relendo as mesmas histórias repetidas vezes.

              António José Bolívar sabe que não pode lutar contra a natureza do local. Entende que quase tudo que for plantado ali vai perecer, que animais domésticos não se adaptam bem àquelas paragens, mas da mesma forma entende que a natureza ao seu redor provê mais do que as plantações dos colonos. Ele não se preocupa em entrar no mata para caçar macacos – cuja carne é mais rica em proteína do que a bovina, diz ele – e nem se incomoda ao ser beliscado por lagostins durante a preparação de seu almoço. É tratado como índio pelos demais. Mas ele não se importa.

              Certo dia, uma canoa levando alguns índios aparece no cais do rio. Os índios estão com o corpo de um americano morto, corpo que encontraram no meio da selva, e não sabem o que fazer com ele. A autoridade da cidade, o prefeito gordo e antipático, já sai acusando os índios de assassinato, mas é impedido antes de tomar qualquer atitude disparatada pelo antigo membro da população indígena, António José Bolívar. Descobre-se então que o “gringo” – está assim no livro – havia matado os filhotes de uma jaguatirica, que o matara e que agora, tomada pela dor, procura se vingar matando todos em seu caminho. Cabe a António José Bolívar adentrar a selva e acabar com a ameaça.

Tem o filme também. Com o Richard Dreyfuss. Melhor ler o livro.

              A narrativa curta deixa claro que a natureza deve ser respeitada, pois não quer e não vai ser domada facilmente. Sempre que houver o embate entre homem e natureza, um deles irá, inevitavelmente perder, muitas vezes os dois, pois a convivência pacífica é muitíssimo difícil de ser encontrada, e na maioria das vezes os seres humanos não estão prontos para aceitar os termos impostos pela lei natural.

              O leitor começa a leitura se colocando na posição de António José Bolívar (o homem que compreende e respeita a natureza versus o prefeito, que odeia a natureza), para depois se colocar na situação da jaguatirica (a natureza em estado absoluto). Entretanto, o embate entre António José Bolívar e o animal selvagem é inevitável e a tensão vai aumentando a cada página. No final, quando estamos prestes a descobrir quem vencerá a batalha, fica difícil encontra uma posição comfortável, pois desejamos que ambos se unam e se auxiliem mutuamente, que os dois vençam. Porém isso é impossível.

Ricardo M. 2017/Mar/30 (lido em espanhol)

domingo, 26 de fevereiro de 2017

“Deixa de ser afetado!” - Murakami Haruki e seus fãs

Ota Hikari e sua crítica às obras de Murakami Haruki

              Ota Hikari (51) integrante da dupla humorística japonesa Bakusho Mondai, durante o programa Close-up Gendai Plus, da NHK, exibido em 23 de Fevereiro pela NHK, disse que o escritor Haruki Murakami (68) não tem a menor consideração para com os leitores.

              Ota Hikari é conhecido por ser um Anti-Murakami e já repetidas vezes criticou o escritor na mídia. Ao contrário do que se imagina, existe no Japão um grande número de pessoas que não gostam dos fãs de Murakami, conhecidos como Harukistas. Dentre esses que não se afeiçoam tanto ao escritor, houve um número considerável deles dizendo que a NHK fez um bom trabalho permitindo que Ota falasse assim na TV.


"Eu não entendi nadinha"

              Quatro anos após seu último livro e sete após o lançamento de sua última obra com mais de um volume, Kishidan-cho goroshi (Algo como O Assassinato do líder dos cavaleiros) foi lançado no Japão no dia 24 de fevereiro. A editora Shinchosha está esperando uma grande vendagem e já espalhou 1.3 milhões de cópias pelas livrarias do país, o que faz com que o livro já seja um best-seller.

              Na noite do dia 23, o programa Close-up Gendai Plus fez um especial sobre Murakami. Mostrou imagens dos Harukistas esperando em frente às livrarias para comprar os exemplares. Uma moça entrevistada disse vou comprar e já sair lendo, sem dormir, até o sol raiar!. Um grupo que, não conseguindo esperar até a abertura da loja resolveu se juntar para discutir o que pensam estar no conteúdo do novo livro. Apresentou também escritores que escrevem paródias de tais livros. Em meio a esses e outros acontecimentos, Ota Hikari foi o centro das atenções.

              Deixa de ser afetado! disparou o humorista, com relação às obras de Murakami. Ficar fazendo sanduches e comê-los com cerveja. Só tem esse tipo de descrição. Daí eu penso: Tem algum japonês que faça isso?!’”, disse Ota. Na segunda parte do programa, Ota fez comentáros sobre 1Q84 (2009).

             Dá pra entender? Eu não entendo nadinha. Mas o que é isso aqui! é o que eu fico pensando.

Ele também disse que não entende os que apoiam o livro:

             Escreva algo mais inteligível, poxa. É muita falta de consideração com os leitores, criticou.

              Durante o programa, Ota explicou que os que declaram seu amor às obras de Murakami estão centrados na internet e que as controvérsias entre os Harukistas e os anti-Murakami estão se expandindo.

              Seja como for, há 416 reviews de leitores de 1Q84 na Amazon japonesa, 143 com 5 estrelas e 56 com apenas uma estrela.

              A verdade é que Ota já foi fã de Murakami. Depois de seu grande sucesso Norwegian Wood, de 1987, suas obras foram ficando chatas pra cara***, e seus livros se tornaram um tópico repetidas vezes elogiado pela mídia.

              Em um programa de rádio que foi ao ar em 30 de Abril de 2013, Ota disse que o conteúdo dos livros de Murakami é zero e que Prêmio Nobel é o cacete. Durante a conversa no programa de rádio, seu colega Tanaka Yuji explicou sobre os Harukistas que são pessoas que lêem as obras para apoiar a popularidade e ficar na moda.

              Ota foi convidado ao programa da NHK como representante dos anti-Murakami e suas declarações se espalharam pelo Twitter. Além disso, opiniões agradecidas à NHK por exibir suas declarações também se fizeram presentes.

Clo-Gen começando agora com Ota detonando Murakami. Ele tem coragem de dizer o que todo mundo pensa. Ota e Clo-Gen são demais!

Que bom! Eu tinhna complexo por não gostar de Murakami. Me sinto melhor sabendo que Ota também não gosta

Eu concordo quase completamente. Na verdade, nunca consegui terminar um livro do Murakami. Quando peguei os livros do início da carreira dele, não conseguia compreender o que estava escrito, apesar de conseguir ler as letras”.

              Do lado dos Harukistas não houve muita oposição às declarações de Ota. É possível que os fãs tenham previsto o que seria dito e, talvez, porque a batalha entre harukistas e anti-Murakami tenha entrado no campo da visão filosófica das coisas.

Ricardo M. (2017/Fev/27) 

★★★Traduzido de★★★
「かっこつけてんじゃねえよ!」 太田光、村上春樹批判の徹底ぶり : J-CASTニュース

domingo, 5 de fevereiro de 2017

A Half-Life (Ardhakathanak) - Banarasidas

Pioneirismo Solitário

              Imagine-se segurando uma caneta, sentado à frente das folhas de papel que vão armazenar a sua autobiografia. Exato, você está se preparando para escrever a história da sua própria vida, de seu nascimento até este momento, no qual se encontra em frente ao papel em branco. Como você vai fazer isso? As opções são variadas. Você pode contar sobre si mesmo em primeira pessoa e passar para o papel suas impressões, ideias e experiências, tal qual as sentiu. Pode também escrever em terceira pessoa e se posicionar com um certo distanciamento, tentando ser tão neutro quanto possível. Pode se basear em livros de fantasia e povoar sua biografia com seres imaginários e aventuras impossíveis. Pode se colocar no papel de alguém famoso e importante e reescrever trechos de sua vida que você acredita que merecem mesmo ser retrabalhados. Em resumo, você tem toda a liberdade de fazer o que outros já fizeram e até mesmo tentar algumas novidades criativas, se conseguir. Seja como for, você tem centenas, milhares, de exemplos que pode seguir, milhares de modelos a sua escolha.
              Mas, e se você fosse a primeira pessoa a escrever sua própria história, como faria?


              Por volta de 1641, lá na bela Agra, cidade que mais tarde abrigaria o Taj Mahal, na mãe Índia, um homem chamado Banarasidas (ou बनारसीदास BaNARaSIDAS, para os que lêem devanagari) resolveu que estava na hora de pôr sua vida preto no branco. Banarasidas, já estava contando com 55 primaveras, e achou propício registrar no papel a sua trajetória até ali, a metade de sua vida. Foi então que o Ardhakathanak ou Ardhakathanaka (अर्धकथानक, “Meia-história”) nasceu. Ah, sim. Jainistas, como Banarasidas, acreditavam que o homem tinha uma vida máxima de 110 anos, logo, ele estaria apenas no meio do caminho. Dante, logo no início da Divina Comédia, dizia que o meio da vida era aos 35. Acho que fico com a realidade do italiano, apesar da proposta do indiano não ser nada má.

Now fifteen years old                                               Contando quinze anos
And ten months more,                                              Mais dez meses de idade,
To fetch his bride went                                             Buscar sua noiva foi
The poet Banarasidas.                                             O poeta Banarasidas.*

              Banarasidas era filho de um próspero joalheiro e foi comerciante por várias vezes. Bem, tentou várias vezes e falhou várias vezes. Coisas da vida: alguns nasceram para vender jóias, outros para compor a primeira biografia em uma língua indiana. Homem voltado mais ao lado espiritual do que mundano, Banarasidas era um ótimo poeta, proficiente com sua linguagem e muito habilidoso com seus dizeres concisos porém cheios de significado. Pena que poesia não dava dinheiro na Índia do século XVII. Banarasidas era um comerciante tão incompetente que certa vez, após quebrar mais um de seus negócios e contar para sua esposa, ela lhe entregou vinte rúpias (leia-se: uma boa grana) que havia guardado para uma emergência. Talvez ela soubesse da falta de dotes comerciais do marido.

Greed is the root of all evil.                                  A cobiça é a fonte de todo o mal.
The root of sorrow is love.                                    A fonte da tristeza é o amor.
Indigestion is the root of disease,                         A indigestão é fonte da doença,
And the root of death is this body.                        E a fonte da morte é este corpo.*

              Os versos compostos por ele são expressivos e bem concatenados. Sua leitura satisfaz e faz refletir sobre a vida, valores, relações sociais e até mesmo dieta alimentar (sim, pois se não bastasse os indianos serem vegetarianos, os jainistas ainda tem coisas do tipo “vamos selecionar algumas verduras e legumes aleatóriamente e não vamos comê-las, só porque sim”. Vai entender.). Tudo leva a crer que Banarasidas não era apenas um versista, uma pessoa colocando palavras que rimam uma em combinação com outra para ficar na métrica e soar bem. Ao que tudo indica, sua falta de esperteza para lidar com finanças acabou sendo compensada por uma perícia poética bastante fora do comum. Assim sendo, nada mais prático do que usar essa poesia acumulada para escrever a primeira biografia em uma língua indiana, composta em poesia impecável em estilo, métrica e conteúdo.

Nine children were born and died.                     Nove filhos nasceram e morreram.
The husband and wife remained, two alone,      Marido e esposa restaram, sozinhos,
Like trees that shed their leaves in autumn,       Como árvores que desfolham no outono,
And are left and leafless.                                    E ficam expostas e nuas.*

              Depois de completa a obra, parece que Banarasidas reunia os amigos e familiares e lia trechos de sua poesia, relembrando a todos de momentos de sua vida para quem quisesse ouvir. Afinal de contas, para quê alguém escreveria sua biografia se não fosse para ler para os amigos durante o churrasco (de cenoura? de alface?) do fim de semana? Esses jainistas... (pra ser sincero, toda vez que eu esbarro ou penso na palavra jainismo, não consigo evitar de lembrar da filha do “Sueco” na Pastoral Americana, aquela vaca sagrada.).


               A tradução - excelente, por sinal - é de Rohini Chowdury, famosa tradutora de obras indianas e escritora de livros infantis. O prefácio do sábio Professor Doutor Rupert Snell, da Universidade do Texas em Austin, é uma obra em si: esclarecedora e contagiante. O Professor Snell também é o autor dos guias de hindi "Get Started in Hindi", "Teach Yourself Hindi", "Hindi Conversation" e outros. Para quem gosta de se aventurar pelo mundo das línguas, "Teach Yourself Hindi" é pura diversão.

A hundred and ten years                         Cento e dez anos é
Is the span of man's life.                         A duração da vida do homem.
In Samvat 1698,                                      Em Samvat 1698 (1641),
Banarasi's life is at the midpoint.           A vida de Banarasi se encontra na metade.*

              Depois de finalizar sua biografia poética e lê-la para seus chegados algumas vezes, ao longo de dois anos, eis que Banarasidas vem a falecer. Quem diria. O homem que foi o pioneiro das biografias indianas, que compôs sua história com alta poesia e que dizia ter feito isso para registrar os eventos até a metade de sua trajetória, morre, aos 57 anos de idade. Uma pena. Tivesse vivido mais alguns anos teria visto o Taj Mahal pronto. A grande ironia disso tudo é que sua “meia história” acaba se tornando sua “história completa”.

*(Todas as traduções são minhas e do inglês)

Ricardo M. 2017/Fev/05 (lido em inglês)

domingo, 15 de janeiro de 2017

A Medida do Mundo - Daniel Kehlmann

Gigantes medindo o mundo

A história está repleta de gênios. Gregos, persas, romanos, árabes, portugueses, espanhóis, franceses, alemães, ingleses, holandeses, americanos, russos, japoneses, indianos, chineses, israelenses, australianos e até mesmo brasileiros. Muitos brasileiros, na verdade. O mundo porém está coberto por uma espessa neblina que impede que gênios sejam percebidos assim que surgem. Felizmente homens e mulheres incomuns percebem as incongruências da vida ao seu redor e notam que mal se encaixam na sociedade onde se encontram. Gênios também se cruzam, vez por outra, e deixam para a história as marcas indeléveis de seus encontros.


Era verão de 2009. Filipe, o Kepler, começa: “tô lendo esse livro alemão...” e logo lembrei das leituras de Goethe e Hesse para a faculdade. Maçantes e difíceis de digerir. Sérias num nível mais alto e mais à esquerda – ou direita, não sei bem, mas bem fora da casinha – do que eu julgava ser literatura acadêmica. Os alemães, com isso de fazer tudo perfeito, acabam muitas vezes por tolher a diversão da experiência em detrimento da alta qualidade, seja isso o que for. Mais tarde, lendo O Leitor, do Benhard Schlink, descobriria o prazer de ler obras de autores alemães modernos. Mas ainda não. Não sei que livro é esse e já não gosto dele, pensei.

Dois segundos depois, Filipe prossegue. “É sobre o Humboldt e o Gauss, quando eles se encontraram em Berlim pra uma conferência e, bom, começa bem antes, contando as infâncias e aventuras dos três.”
“Dois. Humboldt e Gauss. São duas pessoas, não?”, confirmei.
“É, sim, mas são dois Humboldt. O Wilhelm e o Alexander. Se bem que o livro centra no Alexander.”

Como bom menino que era, sabia que Gauss era a unidade de densidade de fluxo magnético e só podia ter vindo do nome de alguém. Um enigma a menos. Como bom aluno de letras, sabia muito bem da Universidade Humboldt e das contribuições de Wilhelm von Humboldt no campo da linguística, uma ciência tão misteriosa e incompreensível quanto a astrologia, a informática e a estatística. Alexander von Humboldt, desse eu não tinha ouvido falar.
“O naturalista” completou meu amigo.
“Ah, sim!”, menti.


Bastante excitado pela leitura, Filipe prosseguiu com seu relato. Contou que Humboldt e Bonpland (mais um nome a ser pesquisado) haviam viajado pela américa do sul e central, medindo tudo que estivesse à vista: montes, montanhas, cavernas, rios e parando para recolher amostras de plantas e animais para serem enviados à Europa depois da devida catalogação. Um livro alemão sobre alemães sendo alemães. Pessoas cruzando o atlântico para medir montanhas e recolher galhos de plantas para enviar para o museu mais próximo de casa. Não vou ler. Não vou.

Dias se passaram até que Filipe mencionou o livro novamente. Uma leitura impressionante e altamente divertida, dissera ele. Espere um momento. Diversão? Como pode ter diversão nesse livro? Pedi detalhes, estava ficando curioso.

Foi então que numa longa e divertida conversa Filipe me resumiu o livro até o ponto em que estava lendo. A infância de Gauss e a anedota envolvendo a “descoberta” de sua habilidade matemática. A opulência dos Humboldt e a contrariedade da mãe de Alexander no que dizia respeito ao sonho do filho de viajar e conhecer o mundo. A liberdade que ele sentira quando a mãe opressora morreu. O encontro de Humboldt com o francês Bonpland. A incompatibilidade de seus gênios, a compatibilidade de suas paixões. Gauss viajando de balão e entendendo como medir o universo. Netunismo. Goethe. Kant. Bonpland maravilhado pela nudez das belas índias sul-americanas, Humboldt assexuado. Gauss experimentando curare. Humboldt experimentando curare. Humboldt testando enguias elétricas. Índios. Mosquitos. Múmias. Canibais. Mosquitos. Escravidão. Calor. Suor. Crocodilos. Mosquitos. E ainda faltava um bocado de páginas para o fim da aventura, o que garantia mais algumas descobertas e risadas.

Tá. Admito. Preciso ler esse teu livro. Agora. Já. Ontem.
“Bom, só tem em alemão, por enquanto.”, disse ele.
A tradução para o inglês já havia sido lançada anos antes, mas naqueles tempos comprar um livro em inglês no Brasil não era lá uma coisa muito prática ou barata. A Amazon brasileira ainda não existia e a americana cobrava um fígado saudável de taxa de entrega.

Sabendo que um dia o livro iria cair no meu colo – livros bons sempre, SEMPRE, caem no meu colo – deixei o desapontamento de lado e fui lendo outras coisas. E continuei lendo outras coisas. E continuo lendo outras coisas.

Semanas atrás esbarrei no livro com a tradução em inglês. Comprei e já comecei a ler no mesmo dia.


Basicamente, em 1828 Alexander von Humboldt (1769-1859) convida o “Princeps Mathematicorum” Carl F. Gauss (1777-1855) para que se junte a ele em Berlim, antes da partida de Humboldt rumo à Rússia. O eternamente mal-humorado Gauss deseja ignorar o convite, mas é literalmente mandado à força pela esposa Minna, a quem ele detesta, e parte em direção à capital acompanhado do filho mais novo, Eugen, a quem Gauss também detesta. Quando Gauss chega na mansão de Humboldt, a narrativa passa para o flashback, contando alternadamente, desde a infância, as aventuras de ambos gênios alemães.

É interessante notar vários pequenos detalhes e diferenças entre os dois homens. Gauss é o retrato do gênio da sarjeta: nascido na pobreza, não tinha nenhuma chance de se tornar alguém. Humboldt era o filho mimado de uma família nobre, alguém que jamais precisaria pensar em trabalhar ou se esforçar para engradecer seu nome. Humboldt sonhava em cruzar o planeta inteiro e desvendar os segredos de todos os cantos da terra. Gauss era acometido de terror sempre que precisava se distanciar de sua cidade, algumas vezes até mesmo de dentro de sua casa. Humboldt acreditava que a verdadeira ciência é aquela feita ao ar livre, mundo afora. Gauss cria firmemente que ciência alguma pode nascer de outro modo a não ser de uma mesa, papel, lápis e talvez uma luneta ou outro instrumento.

Poster do Filme

Gauss é um personagem cativante. Seu mau-humor é infeccioso e hilário. Sua ida até Berlim para o encontro com Humboldt se deve principalmente à vontade de ficar longe de sua esposa Minna. Ele sofre e se atormenta pelo fato de que todos os seres humanos pensam mais devagar do que ele, uma diferença de velocidade que é gritante para ele e que faz com que muitas vezes ele se pergunte se todos na terra estão atuando em seus papéis. Ele também percebe com bastante clareza – clareza quase profética – o que ainda falta ser descoberto, melhorado ou criado pelo homem, bem como o que, por anacronismo, está para deixar de existir.

Humboldt é um gênio focado de maneira tão absurda que mesmo os que convivem com ele jamais se acostumam com sua metodologia e eficácia extrema (“Porque você precisa ser assim, tão alemão?”, diz Bonpland. Reclamação compreensível após algumas páginas). Sua determinação inflexível e sua fé inabalável na ciência são mesmo de deixar qualquer um perplexo. Capaz de passar meses contando piolhos de cabeças alheias para criar uma tabela estatística, perder um raríssimo eclipse solar para fazer medições precisas, segurar enguias elétricas por dias e dias para estudar sua natureza. E mais.

Daniel Kehlmann também é um gênio. Só pode.
Sua escrita é, digamos, alemã. No sentido científico da palavra, sua narrativa é muito bem adaptada e combinada com o tema que trata, sendo essencialmente concisa e direta ao ponto. As frases tendem a ser curtas e os parágrafos são episódicos (pelo menos em inglês), o que faz com que cada página seja um deleite, cada capítulo um show de informação, riso, aventura e até pitadas de poesia. Se bem que riso é o que suas páginas mais causam. O humor aqui é seco, contido, discreto. Pena que eu não sou. Me peguei rindo alto, várias vezes, em trens, cafés e no ambiente de trabalho. Humor de bom gosto e que permanece na lembrança. Uma raridade.

Resumindo, este é um romance que trata de fatos históricos e de ciência. Um romance histórico-científico? Quem sabe. Mas seja como for classificado, em “A Medição da terra”, Daniel Kehlmann vai, com toda a certeza, atender às expectativas de fãs de ambos os gêneros literários e agradar aos que preferem outras temáticas.

Ricardo M. 2017/Jan/15 (lido em inglês)


domingo, 31 de julho de 2016

A solidão dos números primos - Paolo Giordano


日本語

Ultrapassando a solidão

            O título assusta um pouco: números primos. Causa um certo desconforto se imaginar lendo um romance que tem como pano de fundo a matemática – ainda que existam, sim, muitos romances muito bons com as ciências como pano de fundo – mas, não. Trata-se na realidade de um romance sobre dois jovens que são extremamente incapazes de terem vidas normais. No entanto, uma vez que apenas um romance romântico não funcionaria para criar uma história satisfatória, o autor – na época, mestrando em física – decidiu nos apresentar ali nas páginas de seu livro um pouco de seu mundo.


            “Matemática e amor. Certo, vamos enfrentar este livro.” Foi assim que tomei nas mãos este livro e, bastou abri-lo e ler as primeiras linhas para que a fluidez do texto e a beleza das frases se fizessem sentir. O desenrolar dos acontecimentos nos prende, Paolo Giordano sabe como conduzir uma narrativa de maneira que mesmo eventos banais pareçam envolventes.
            Fica a pergunta: o que é solidão? Pois ela não é apenas causada pela ausência de alguém a nossa volta. E é isto que este livro vem nos provar.
            Mattia e Alice não estão sozinhos. Ambos nasceram e foram criados em famílias abastadas do norte da Itália (os eventos se passam, em boa parte, em Turim), e são bastante amados por seus pais. Desde muito jovem Mattia já demonstra uma habilidade incomum para os números. Alice é uma menina com muita energia e uma imaginação bastante fértil.
            Então porque estes dois amigos unidos pelo destino simbolizam aqui a solidão?
            Temos todos, arrisco dizer, feridas antigas e complexos plantados no passado e que carregamos conosco, por vezes, até nossos últimos dias. Entretanto, a maioria de nós aprende a lidar com esses problemas, esquecendo-os ou apenas ignorando-os, como se nunca houvesse acontecido nada.
            Ainda bem jovens, os dois se depararam com tragédias em suas próprias vidas. Além disso, ambos fizeram por conta própria as escolhas que levaram a estas tragédias e ambos sabem muito bem disso. É a consciência de que suas escolhas ocasionaram seu sofrimento que torna a dor mais forte.
           Números primos existem muitos. Centenas de milhares, talvez muito mais. Porém, um número primo nunca se encontra ao lado de outro. Vez que outra podemos averiguar a existência de um número primo bem próximo de outro, o que é chamado de número primo gêmeo. Estão sempre perto um do outro, estes números primos gêmeos, sem que jamais se encontrem, pois entre eles sempre haverá um número par. Sempre haverá algo, uma barreira, entre os dois. É possível que os dois números primos gêmeos desta história, Mattia e Alice, estejam mantendo um equilíbrio perigoso, um malabarismo entre si que põe suas próprias vidas em risco de se tornarem sem sentido. Estes dois personagens que são ambos principais e que têm seus corações dilacerados por dentro e corpos feridos por fora.


            Tanto Mattia quanto Alice enfrentaram acontecimentos trágicos em suas infâncias. Ambos momentos foram diferentes entre si, porém com consequências marcantes para eles. A tragédia de Mattia feriu seu “coração”. Ele, para conseguir tornar visível o que nem ao menos ele pode ver, registra no próprio corpo o seu tormento. No caso dele, a tragédia interna da infância é mostrada no exterior por ele mesmo, uma conexão entre corpo e espírito. No caso de Alice, entretanto, é um pouco mais complicado. Ela sofreu com seu corpo um acontecimento trágico irreparável, o que já seria suficiente para magoar seu coração. Acontece que ela usa essa amargura em seu peito para ferir seu corpo de outra maneira.
Estes dois personagens feridos são importantes entre si pois são os únicos que compreendem entre si e sem palavras o que o outro pode estar passando. E mesmo assim, não são capazes de ser felizes juntos, pois estão sobrecarregados com o simples fato de existir. É um livro recheado de dor, sofrimento e solidão.
            “Acho que devia mudar” passando para “Preciso mudar já” e que acaba no “Não consigo mudar, por mais que tente.” Acredito que todos nós já passamos por um momento de conflito, mais ou menos intenso, desta espécie. Mesmo a pessoa mais branda tem seu lado duro e imutável como um número primo. No entanto, no caso de Mattia e Alice, o estágio “Preciso mudar já” extrapolou as categorias conhecidas. Talvez seja este o mesmo motivo pelo qual não precisam mudar mais.
            A vida é repleta de perguntas e cheia de respostas. Porém não são as respostas dadas que nos ajudam a viver. São as escolhas que fazemos e que não temos outra escolha além de seguir que fazem de nós o que somos.
            O livro não satisfaz o leitor com seu final. Sejamos sinceros.
         Este livro está escrito com um estilo muito próprio, no qual uma miríade de fios simbolizando atos dos personagens acabam por guiar o leitor ao que ele espera que possa estar além das últimas páginas do livro.

Ricardo M. 28/Julho/2016 (lido em inglês)