quarta-feira, 1 de junho de 2016

A Guerra do Fim do Mundo – Mario Vargas Llosa

Os Sertões de Vargas Llosa

Após ler Os Sertões de Euclides da Cunha, o grande escritor peruano Mário Vargas Llosa ficou de tal maneira impressionado, que acabou por embrenhar-se, ele mesmo, pelas veredas do sertão brasileiro. Fruto das infinitas horas de pesquisa em bibliotecas e, inclusive, de viagens ao Brasil para ver Canudos de perto, eis que nasce A Guerra do Fim do Mundo.



Mal pude acreditar ao descobrir que uma obra que se impõe com tamanha audácia pudesse contar trinta anos. Sua relevância é absoluta e serve apenas para atestar a maestria da mão que a trouxe à luz.

Dialogando constantemente com a obra canônica de Euclides da Cunha, A Guerra do Fim do Mundo aborda o mais sangrento conflito político da história do Brasil a partir de uma perspectiva literária. E o resultado não poderia ser outro: o livro nos desnuda o caos, a violência, a miséria e, acima de tudo, a ignorância - dos sertanejos, dos militares, dos políticos, dos intelectuais, de todos os brasileiros em entender o que foi Canudos. 

Finda a leitura, não sei o que me impressiona mais: se o realismo das batalhas, que se desenrolam numa sofreguidão e dinamismo cinematográficos; se a vivacidade e cor com que Llosa delineia seus personagens, tão memoráveis e assustadoramente brasileiros; se a narrativa multifacetada, sinuosa, que ora nos conduz pela senda política, ora nos abandona no sertão, em companhia dos obstinados e inescrutáveis sertanejos, para em seguida resgatar-nos e levar-nos de volta ao ponto de partida e destino final: à terra santa, mística, espartana de Antônio Conselheiro e seus apóstolos. 




Talvez o que de fato mais me impressionou tenha sido a sagacidade do autor ao apresentar-nos um Euclides míope, frágil, excêntrico. O jornalista aspirante que se lançou a Canudos com o nobre intuito de oferecer um relato apurado acerca do fenômeno que tanto atemorizava todo o país é incapaz de compreender o que viu. Apesar de ter estado lá, na guerra, na poeira, no sangue, o Euclides de Llosa é incapaz de explicar Canudos. Quebraram-se-lhe os óculos a meio caminho e, cego, ele passa a tatear na escuridão o desenrolar da guerra, tentando tão-somente sobreviver, a fim de poder contar não o que viu, mas o que ouviu, sentiu, sofreu. Pois ao ler A Guerra do Fim do Mundo, pude eu também sentir no rosto o calor das chamas que engolfaram o sertão baiano e clamaram tantas vidas. E tal qual o jornalista míope, ao fim da jornada, também eu não tenho palavras para contar o que vi. A guerra em Canudos retém, ainda hoje, aquele ar dúbio de mito - foi absurda demais para ser verdade, e por demais absurda para não o ser.         

Filipe Kepler 03/Fev/2016 (lido em português)                                                                                 

domingo, 1 de maio de 2016

Os da Minha Rua - Ondjaki

Aurora de nossas vidas

            Infância é essa curta parte inicial de nossas vidas onde tudo que é importante se define e se desenvolve. É a primeira etapa desta corrida contra o tempo a que chamamos vida, a base, o alicerce do que fomos, do que somos. Nada mais natural do que sentir saudades desse tempo, alimentar nostalgias e idealizar o passado de que fizemos parte ou que fez parte de nós mesmos.



            Os da minha rua, do escritor angolano Ondjaki é o que se pode chamar de coletânea de contos, aparentemente organizados sem ordem cronológica, que vão contar acontecimentos de sua infância em fins dos anos 80 e início dos 90. A composição do livro é de 22 textos curtos que podem ser lidos de forma independente, como contos, ou como capítulos. O menino Ndalu (nome real do escritor Ondjaki), às vezes chamado de Dalinho, é o protagonista que narra suas aventuras em Luanda, a capital Angolana. Tudo aqui é contado pela perspectiva de uma criança: encontros com amigos, brincadeiras, o dia a dia na escola, personalidade de parentes, conversas com os pais.

Eu tenho saudades da infância. Acho que é natural. Todas as pessoas, em dada altura da sua vida, tem saudades da infância.
Ondjaki, em entrevista.

Os da minha rua é um livro que pode bem ser chamado de hino à infância, à todas as crianças, aos risos, aos jogos e brincadeiras, aos primeiros amores e  à constante descoberta de um mundo vasto, quase infinito. É uma ode à amizade, à família, à natureza, à memória. Na voz de Ndalu, Ondjaki nos relembra de um universo infantil que parece estar se afastando de nós a cada dia. Sua infância, de seus amigos e de primos, foi uma época em que brincavam na rua, subiam em árvores para colher frutas, participavam de desfiles escolares, reuniam-se ao redor dos mais velhos para ouvir suas histórias.

Ondjaki, Neste livro curto, feito de pequenas histórias, Ondjaki, consegue inserir todas essas informações e adicionar uma mancheia de poesia com uma escrita divertida e emocionante, que nos transporta para a recordação de nossa infância, para a inocência dos tempos em que a vida era simples e os risos bem mais fáceis. 

A vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um mais velho a avisar que a brincadeira já acabou e está na hora de jantar”.

Mas certamente a narrativa dá a entender que nem tudo era um mar de rosas para as crianças de Luanda. Misturando memórias com acontecimentos históricos, Ndalu vai compondo o quadro social de seu país: explorado à exaustão por Portugal para então se libertar e cair numa guerra civil de proporções colossais. O livro também é um convite para conhecer uma obra originalmente escrita em português vinda de um país lusófono que não seja o Brasil ou Portugal, bem como despertar o interesse pela história de Angola.



            Vale a pena também comprovar a presença brasileira em Angola através de novelas e da música. Boa parte do livro tem comentários sobre novelas brasileiras, como O Bem-Amado e Roque Santeiro. Outro de nossos heróis também era muito apreciado por aquelas bandas: Roberto Carlos, cujas músicas eram bastante conhecidas do publico angolano.

Para os que ainda não se aventuraram pelos livros de escritores africanos e lusófonos: vocês ainda não sabem o que estão perdendo. A forma com que se utilizam da língua que usamos diariamente aqui aparece lá de formas mais musicais e mais doces, quase uma língua nova, vivaz e alegre. A narrativa usa uma linguagem simples, repleta de oralidade e frases curtas. Foi bastante divertido descobrir palavras e expressões desconhecidas no Brasil e em Portugal (o livro conta com um glossário nas últimas páginas). Creio que podemos dizer-nos privilegiados por podermos compreender aqui o que dizem por lá, do outro lado do atlântico e, se por vezes alguma palavra nunca antes vista ou expressão desconhecida surge, assim, como quem não quer nada no texto, isso só aumenta o prazer e amplia o interesse na leitura.


Ricardo M. 01/Maio/2016

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Canone Inverso – Paolo Maurensig

Obsessão saudável ou... loucura?

            Faz parte do egoísmo nosso de cada dia pensar que somente pessoas especializadas em algum determinado serviço podem executá-lo bem. Há exceções, claro, mas comumente sentimos um certo desassossego ao ver pessoas com dois trabalhos muito diferentes entre si. Carlos Drummond de Andrade era funcionário público e poeta; Bernhard Schlink é advogado e escritor; Guimarães Rosa era diplomata e escritor; e a lista segue, bem longa. Contudo há algo nas artes que faz com que as associemos como frutos diferentes da mesma árvore. Por isso, não deveria causar desconforto que um músico e restaurador de instrumentos musicais tenha produzido romances. E dentre eles, um belíssimo romance.



            Paolo Maurensig, depois de passar por uma infinidade de experiências com diversas ocupações, decidiu empunhar uma pena e escrever romances. Seu primeiro “A Variante Lüneburg” (Companhia das Letras, 1994) fez um certo sucesso comercial e ajudou a popularizar o nome do escritor na Itália e arredores. Porém foi em 1996, com o lançamento de “Canone Inverso” (ainda inédito no Brasil) que Maurensig atingiu sucesso no mundo todo, um sucesso modesto mas estável.
            O personagem central de Canone Inverso é um violino antigo, um instrumento de fino trato, com uma marca inconfundível: o desenho de uma pequena cabeça humana no seu corpo, uma marca que vai ajudar a reconhecer o violino durante a leitura. A trama é um tanto quanto complicada, mas não excessivamente.
            Um homem anônimo compra o dito violino em um leilão em Londres por uma quantia razoavelmente alta. No dia seguinte, um outro homem aparece no hotel do anônimo e pede para ver o violino. O comprador anônimo permite que o homem veja o violino, se emocionando ao relembrar acontecimentos do  passado. O homem então começa a narrar ao anônimo um encontro que teve com um músico itinerante em Viena, anos antes. O músico itinerante – chamado Jenő Varga –, um tipo de cigano de um vilarejo húngaro, é um prodigioso violinista. E Deste ponto em diante somos arremessados para dentro do relato da vida de Jenő. A estrutura do romance é como o sistema de Matrioshkas, as bonequinhas russas que ficam uma dentro da outra e dentro da outra e dentro da outra: temos um plano inicial – o agora, com o anônimo que acabou de comprar o violino e é visitado pelo outro homem –, passando para o plano onde o homem que visita o anônimo conta a história de como conheceu esse excelente e excêntrico violinista num bar de Viena, para a seguir vermos os acontecimentos pelos olhos do próprio Jenő Varga – sua infância, seus estudos no prestigioso porém severo Collegium Musicum, seu amor imutável e distante pela solista Sophie Hirschbaum e sua amizade pelo colega Kuno Blau. O livro, em suas duzentas páginas trata de temas como a imortalidade e a busca pela excelência na arte. No final – um tanto quanto brusco, diga-se de passagem – somos expostos a uma reviravolta surpreendente e uma conclusão um tanto quanto inesperada.
            Paolo Maurensig poderia ser um músico que também é um escritor, mas ao que tudo indica, ele está mais para um escritor que também é músico. Seus temas não se prendem à música. A variante Lüneburg, por exemplo, é sobre o xadrez e tudo o que a paixão por este jogo pode acarretar.


            Canone Inverso recebeu sua versão cinematográfica pelas mãos do também italiano Ricky Tognazzi. O filme foi lançado em 2000 e não é de todo ruim (recebeu vários prêmios), apenas não segue quase nada descrito no livro. Trilha sonora do über-fantástico Ennio Morricone e Gabriel Byrne no elenco. O filme se passa na Tchecoslováquia (ainda que no livro boa parte da ação se passe na Áustria) e a trama do filme gira em torno da Primavera de Praga e do distinto violino. Ou pelo menos deveria ser assim. O filme foca na relação entre Jenő e Sophie – Ah, a sétima arte! –, com destaque para cenas de amor flamejante entre os dois. Lembra bastante as três porcarias que fizeram "baseadas" no Solaris, do Lem, onde os diretores se preocuparam tanto em mostrar a relação entre Kris e Harey que não se prestaram a mostrar nada mais. Não é à toa que quem viu os filmes depois de ter lido o livro não entendeu por que motivo eles tem o mesmo nome.
            O Livro deixa uma agradável sensação de aprendizado e deixa também temas para discussão interna (obsessão versus obstinação, imortalidade versus vida simples, amizade versus competição, sonho versus realidade), sem falar que sua leitura é prazerosa e interessante, mesmo nos momentos mais intrincados da narrativa. O tom brando e um tanto quanto melancólico com que a história do século XX segundo um violinista húngaro, bem como sua solidão, que vai sendo transmitida aos demais personagens durante a leitura, ecoa a solidão de todo o ser humano, mesmo a mais profunda, e nos atinge.
            Um belo livro que merece seu lugar nas livrarias do Brasil.


Ricardo M. 09/Abril/2016 (lido em inglês, espiado em italiano)

sábado, 19 de março de 2016

Graça Inifinita – Infinite Jest – David Foster Wallace


Partidas de tênis, drogas e Netflix

            Há uma certa agitação no ar, um pouco de ansiedade e muita expectativa com os vinte anos de lançamento de Infinite Jest. Agitação por conta de fãs de carteirinha da obra, ansiedade por conta de novos leitores aficionados pela história e expectativa por conta dos que estão por se aventurar naquelas terras ainda desconhecidas.






















Infinite Jest, com o título mais do que adequado de Graça Infinita no Brasil, é, a história de um garoto, Hal Incandenza, um jogador de tênis. Porém, quem já leu sabe – e deve estar incomodado com o simplismo –, não é só isso. Não somente não é só isto, como também é muito mais, tanto mais que nem ao menos se sabe por onde começar.

Tentemos, pois.
A obra gira em torno do protagonista, Hal Incandenza, o mais jovem membro da família Incandenza, um garoto talentoso e muito inteligente, mas que não tem muita segurança sobre suas habilidades. E de seu estado de saúde mental também. Ele possui uma memória fotográfica e memorizou todo o Oxford English Dictionary (como alguém no Brasil memorizar todo o Houaiss). Parte da trama do livro fica por conta da busca dos assassinos de cadeiras de rodas pela cópia original do cartucho intitulado Infinite Jest. No livro, Graça Infinita é um dos filmes produzidos pelo pai de Hal, James Incandenza, cineasta e fundador da Academia de Tênis de Enfield. O filme é tão interessante e divertido que seus espectadores perdem o interesse em tudo mais e seguem assistindo o filme, ininterruptamente, até morrerem, logo sendo considerado a forma de entretenimento perfeita. Separatistas da região do Quebec, no Canadá, visam utilizar o filme para causar atos de terrorismo nos Estados Unidos, lançando no mercado cópias do tal filme que mata.  Boa parte da ação também acontece na Casa Ennet para a Recuperação de Viciados em Álcool e Drogas, a Ennet house onde Joelle Van Dyne, chamada “A Garota Mais Bonita de Todos os Tempos” e também atriz participante do filme Graça Infinita, está se tratando por abuso de substâncias tóxicas. E como isso tudo se encaixa numa história só?

Sendo um romance pós-modernista – sabe, né? Aquilo de narrativa fragmentada, paradoxo, narrador no qual não se pode confiar e tal – Graça Infinita conta com as marcantes descrições psicológicas de seus personagens para se manter coeso e, em vários casos durante as mais de mil páginas do livro, conta com o surreal para manter o interesse do leitor. David Foster Wallace se utiliza, em doses cavalares, de jocosidade (daí o jest do Infinite Jest), ironia e humor negro. Dentro do reino de Graça Infinita, relatos anedóticos improváveis, porém passíveis de riso, servem de introdução para histórias hilárias sobre a vida cotidiana e suas desgraças, que levam os leitores às gargalhadas, por mais hediondas e macabras que soem mencionadas em tom sério. Quase todo o livro é escrito com um tom melancólico que vai ficando mais ou menos aparente, dependendo da ação. Talvez resida aí a sua grandeza: Graça Infinita é uma obra mestra e, dependendo de como é lido, pode ser uma fonte de regozijo para muitos e de tristeza para outros tantos.


E isto não é tudo.
Há quem diga que o livro todo é uma grande exibição de conhecimento do autor, David Foster Wallace. Provavelmente não é o caso, mas, ainda que fosse, não haveria motivos para reclamações.  Graça Infinita é mais do que um manual: é um verdadeiro compêndio sobre tênis – faz sentido, já que praticamente todos os personagens de menor idade são estudantes da Academia de Tênis de Enfield –, estudos sobre a mídia, sobre o cinema e artes visuais, vícios – e não apenas por drogas –, linguística, ciência, tecnologia, relações internacionais e esportes em geral. E tudo aplicado ao texto de forma natural, claro, pois ninguém quer uma descrição de como funcionam lentes de câmeras no meio da narrativa. A não ser que isso tenha ou vá ter alguma função mais tarde.

Há quem também diga que o autor profetizou muitas coisas com este livro, mas, méh, é preciso ser muito bonzinho pra aceitar o que ele escreveu como profecia. Um dos casos: a expansão da internet, com o uso de teleconferência (“FaceTime”) e o Netflix. Os personagens mais jovens do livro se utilizam muito de “telefonemas com imagens” e assistem filmes fora da programação da TV o tempo todo. Sejamos sinceros: ver a internet crescendo e expandindo em 1996 talvez não fosse algum realmente difícil. Talvez fosse necessário um bocado de imaginação, mas não há nada de profético nisso. Além disso, os filmes e demais programas que os personagens assistem aparecem na forma de cartuchos, que foram substituídos pelos CDs bem na época do lançamento do livro.




Graça Infinita é uma obra coesa e fechada em si mesma, densa, múltipla, inteligente, engraçada, ensurdecedora, fria, triste e brutal, que não necessita de nenhum conhecimento do mundo exterior para ser degustada. Trata-se de uma desafiadora quantidade de páginas – sem falar que as mais de duzentas notas explicativas são parte essencial da trama e não devem ser ignoradas –, com a incitante quantidade de mais de quinhentas e cinquenta mil palavras, das quais cerca de vinte mil foram criadas por Wallace, que levou cerca de seis anos – talvez mais – para ser composto e lançado ao público.

É um dos livros publicados nos últimos trinta anos que vem resistindo bem à passagem do tempo e ganhando admiradores em muitos países. Esqueça tamanho. Ele ainda é menor do que o Parallel Stories do Péter Nádas e bem menor do que o The Instructions do Adam Levine. Graça Infinita merece muito ser lido. Não é uma leitura simples e com certeza não será uma leitura rápida, mas certamente será uma leitura marcante.

Ricardo M. 20/mar/2016 (lido em inglês)

terça-feira, 1 de março de 2016

Jesus Cristo Bebia Cerveja - Afonso Cruz

Jerusalém está em todo o lugar

            Jesus Cristo bebia cerveja. Não dá pra dizer que não se trata de um título interessante e curioso. JC ia em bares romano-israelitas tomar um traguinho com os apóstolos? O untado entornava bem uma loira gelada? Como assim?



            Depois de algumas semanas afundado até o pescoço em autores de língua inglesa (não que isso seja necessariamente ruim), achei que era mais do que a hora em que eu deveria voltar a ler romances escritos na única língua que conta. A minha. A nossa.

            Jesus Cristo bebia cerveja conta a história de Rosa, uma moça que mora com a velha avó quase surda numa vila do Alentejo, em Portugal. Rosa foi abandonada pela mãe ainda criança e viu o pai morto, depois deste ter se suicidado. Amparadas apenas pela pequena horta que têm e pelas pensões que recebem, as duas vivem uma vida de difíceis condições. Rosa é uma moça tristonha e sonhadora. Vive relembrando os pais que já se foram e lendo repetidas vezes os mesmos romances de caubóis e alguns romances policiais, decorando trechos e recordando personagens.

            Algum tempo depois, Rosa passa a viver e trabalhar na casa de um senhor rico da cidade e deixa a avó aos cuidados de uma vizinha. Entretanto, a situação não é boa nem para Rosa nem pra sua avó Antônia, que já não enxerga direito e tem frequentes lapsos de memória. A avó sonha em conhecer a Terra Santa, Jerusalém, mas Rosa sabe que não há a menor possibilidade disso acontecer.

Rosa então conhece o professor Borja, um douto homem de ciências, que resolve ajudar Rosa a realizar o sonho da avó. O professor teve um casamento terrivelmente malfadado e agora está apaixonado por Rosa, apesar de já ser um homem com mais de setenta anos de idade.

Quando o professor vê no rosto de Rosa sua tristeza por não poder levar a avó à Jerusalém, o professor se compadece e elabora um plano: remodelar a aldeia pertencente a uma rica senhora inglesa de modo a fazer com que Antônia pense que está realmente na terra santa.




Jesus Cristo bebia cerveja conta histórias de amor e muita solidão. Mais solidão do que amor, pois sentimentos bonitos e tudo o que leva à felicidade dura tanto quando um fugaz momento. A solidão, a tristeza, a morte: isso é o que dura, que nos acompanha, que penetra em nossos corpos e faz de nós o que somos. Sentimentos que falam do que é, do que foi e do que será. Que explicam a essência de tudo que existe e nos fazem refletir sobre o que somos e para onde vamos.

“Cada vez que deixamos de ser percebidos, morremos. Quando somos enterrados deixamos de ser percebidos por toda a gente, mas quando os outros já não olham para nós, ficamos condenados para um número limitado de pessoas, a uma morte a tudo idêntica à outra. Nossa morte não acontece quando somos enterrados, acontece continuamente: os dentes caem, os joelhos solidificam, a pele engelha-se, os amigos partem. Tudo isso é morte. O momento final é apenas isso, um momento.”

A leitura do livro é deliciosíssima. Os capítulos são curtos e concisos, apresentando em poucas frases tudo que é necessário ou importante saber. Os personagens são cativantes e dotados de idiossincrasias fascinantes. Afonso Cruz destila o melhor da linguagem para oferecer-nos situações únicas e disparates  que se encaixam tão bem na narrativa que, durante a leitura,  nem ao menos sentimos muita estranheza. O bom humor com que a história é contada é contagiante, mas não deixa de emocionar. Um humor que sobe e desce como as marés acompanha a leitura de cabo a rabo, bem como uma fina ironia e uma pungente melancolia, que vai engrossando e ficando cada vez mais viscosa a cada página, até que o final surpreendente se gruda como cola em nós e já não há mais como escapar. Contudo, a leitura não se torna triste ou desagradável. Apenas reflete, com muito bom humor, um pouco da melancolia de que somos feitos.


Ricardo M. 2016/03/01 (lido em português)