Romanceando um
romance português
O
romance "A Flor do Sal" é um romance histórico e, ao mesmo tempo, não
é um romance histórico. Explico: a obra remonta ao passado lusitano heróico do
século XV, porém usando-o como contraponto do Portugal atual, do século XXI.
A
autora promove uma construção romanesca que se firma sobre duas narrativas. Ela
nos narra a história do navegador português Afonso Sanches, que teria chegado à
América doze anos antes de Cristóvão Colombo, mas que, por ordem do rei D. João
II, teve de calar-se por estar em curso a famosa querela ibérica sobre a
supremacia dos mares - disputa esta que culminaria posteriormente com a
elaboração do Tratado de Tordesilhas, dividindo as terras recém-descobertas do
Novo Mundo entre os dois reinos.
No
entanto, sua história não nos é contada diretamente: como uma tradução
indireta, é por meio da escritora Guiomar que temos notícias das aventuras e
dos dissabores do navegador, cujo espírito materializa-se todas as noites para
a escritora, a fim de narrar-lhe sua trajetória e ter seu nome escrito na
história. Esta passa então a escrever um romance sobre Afonso Sanches,
participando a nós, leitores, o processo de elaboração da obra. Por
conseguinte, temos, da “outra ponta” do romance, a história da própria Guiomar,
que nos conta do andamento de seu livro, das pesquisas, da futura publicação,
bem como de seu romance com o irmão gêmeo, Lourenço. Ambos se consideram a
metade perdida do outro e vivem com ardor essa paixão proibida, desfrutando, de
um lado, de toda a felicidade que ela lhes proporciona, mas também arcando, do
outro, com todo o sentimento de culpa e transgressão que dela advém.
A
autora nos apresenta, portanto, duas histórias diferentes, em capítulos
alternados: uma é o romance (a história de Afonso Sanches); a outra é o romance
da feitura do romance (a história do andamento do livro sobre o navegador e do
amor controverso entre Lourenço e Guiomar). Entretanto, apesar de distintas, as
duas narrativas se constroem numa perspectiva de complementaridade, na medida
em que uma se realiza a partir da outra. Isso se dá pelo fato de a narrativa de
Afonso Sanches ser uma criação de Guiomar, mas que se desenvolve a partir do
depoimento de uma pessoa real. Com efeito, há indícios históricos de que tenha
existido um navegador português de nome Afonso Sanches que teria chegado à
América antes de Colombo. No entanto, há pouquíssimas informações a seu
respeito, de modo que Guiomar tem de se servir da ficção para preencher as
lacunas da história.
Forçada,
portanto, a inventar-lhe a vida, Guiomar faz uso de diversos elementos de sua
própria história para conceber desde a personalidade até os amores do
navegador. No entanto, ela mesma é também uma personagem ficcional, de modo que
tanto a narrativa sobre Afonso Sanches quanto a narrativa sobre o andamento do
livro sobre o navegador são criações fictícias. Trata-se da famosa metaficção:
aquela que identifica conscientemente seus próprios mecanismos, a referência da
referência. Em nenhum momento ela nos permite esquecer de que estamos diante de
uma obra ficcional, embora se esforce, paradoxalmente, em fazer-nos crer no
contrário.
"A
Flor do Sal" de Rosa Lobato de Faria é um convite ao leitor a empreender
uma grande viagem: uma viagem ao passado e, sobretudo, à (re)construção deste
passado. Amparados pelo leme seguro de seu lirismo refinado e sutil, navegamos,
sob o comando do destemido navegador Afonso Sanches, pelos mares do passado em
busca de novas terras para o presente, novas paisagens jamais vislumbradas
pelos olhos da história. E ao final da travessia, assim como Afonso Sanches,
deparamo-nos, também nós leitores, com a outra ponta do mar: as paragens do
século XXI, em que vivem Guiomar e Lourenço, portugueses dos nossos dias,
figuras de um povo que vive ora em terra firme, mas eternamente errante, eternamente
a navegar pelas águas da memória, em busca das aventuras e glórias das
distâncias do passado.
Filipe
Kepler 12/07/2011
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