Pioneirismo Solitário
Imagine-se
segurando uma caneta, sentado à frente das folhas de papel que vão armazenar a
sua autobiografia. Exato, você está se preparando para escrever a história da
sua própria vida, de seu nascimento até este momento, no qual se encontra em frente
ao papel em branco. Como você vai fazer isso? As opções são variadas. Você pode
contar sobre si mesmo em primeira pessoa e passar para o papel suas impressões,
ideias e experiências, tal qual as sentiu. Pode também escrever em terceira
pessoa e se posicionar com um certo distanciamento, tentando ser tão neutro
quanto possível. Pode se basear em livros de fantasia e povoar sua biografia
com seres imaginários e aventuras impossíveis. Pode se colocar no papel de
alguém famoso e importante e reescrever trechos de sua vida que você acredita que
merecem mesmo ser retrabalhados. Em resumo, você tem toda a liberdade de fazer
o que outros já fizeram e até mesmo tentar algumas novidades criativas, se
conseguir. Seja como for, você tem centenas, milhares, de exemplos que pode
seguir, milhares de modelos a sua escolha.
Mas,
e se você fosse a primeira pessoa a escrever sua própria história, como faria?
Por volta de 1641, lá na bela Agra, cidade que mais tarde abrigaria o Taj Mahal, na mãe Índia, um homem chamado Banarasidas (ou बनारसीदास BaNARaSIDAS, para os que lêem devanagari) resolveu que estava
na hora de pôr sua vida preto no branco. Banarasidas, já estava contando com 55
primaveras, e achou propício registrar no papel a sua trajetória até ali, a
metade de sua vida. Foi então que o Ardhakathanak
ou Ardhakathanaka (अर्धकथानक, “Meia-história”) nasceu. Ah,
sim. Jainistas, como Banarasidas, acreditavam que o homem tinha uma vida máxima de 110 anos, logo, ele estaria apenas no meio do caminho. Dante, logo no
início da Divina Comédia, dizia que o
meio da vida era aos 35. Acho que fico com a realidade do italiano, apesar da
proposta do indiano não ser nada má.
Now fifteen years old Contando quinze anos
And ten months more, Mais dez meses de idade,
To fetch his bride went Buscar sua noiva foi
The poet Banarasidas. O poeta Banarasidas.*
Now fifteen years old Contando quinze anos
And ten months more, Mais dez meses de idade,
To fetch his bride went Buscar sua noiva foi
The poet Banarasidas. O poeta Banarasidas.*
Banarasidas era filho de um próspero joalheiro e foi
comerciante por várias vezes. Bem, tentou várias vezes e falhou várias vezes.
Coisas da vida: alguns nasceram para vender jóias, outros para compor a
primeira biografia em uma língua indiana. Homem voltado mais ao lado espiritual
do que mundano, Banarasidas era um ótimo poeta, proficiente com sua linguagem e
muito habilidoso com seus dizeres concisos porém cheios de significado. Pena
que poesia não dava dinheiro na Índia do século XVII. Banarasidas era um
comerciante tão incompetente que certa vez, após quebrar mais um de seus
negócios e contar para sua esposa, ela lhe entregou vinte rúpias (leia-se: uma boa grana) que havia guardado para
uma emergência. Talvez ela soubesse da falta de dotes comerciais do marido.
Greed is the root of all evil. A cobiça é a fonte de todo o mal.
The root of sorrow is love. A fonte da tristeza é o amor.
Indigestion is the root of disease, A indigestão é fonte da doença,
And the root of death is this body. E a fonte da morte é este corpo.*
Greed is the root of all evil. A cobiça é a fonte de todo o mal.
The root of sorrow is love. A fonte da tristeza é o amor.
Indigestion is the root of disease, A indigestão é fonte da doença,
And the root of death is this body. E a fonte da morte é este corpo.*
Os versos compostos por ele são expressivos e bem
concatenados. Sua leitura satisfaz e faz refletir sobre a vida, valores,
relações sociais e até mesmo dieta alimentar (sim, pois se não bastasse os
indianos serem vegetarianos, os jainistas ainda tem coisas do tipo “vamos
selecionar algumas verduras e legumes aleatóriamente e não vamos comê-las, só
porque sim”. Vai entender.). Tudo leva a crer que Banarasidas não era apenas um
versista, uma pessoa colocando palavras que rimam uma em combinação com outra
para ficar na métrica e soar bem. Ao que tudo indica, sua falta de esperteza
para lidar com finanças acabou sendo compensada por uma perícia poética
bastante fora do comum. Assim sendo, nada mais prático do que usar essa poesia acumulada
para escrever a primeira biografia em uma língua indiana, composta em poesia impecável
em estilo, métrica e conteúdo.
Nine children were
born and died.
Nove filhos nasceram e morreram.
The husband and wife
remained, two alone, Marido e esposa restaram, sozinhos,
Like trees that shed
their leaves in autumn, Como árvores que desfolham no
outono,
And are left and leafless. E ficam expostas e nuas.*
Depois de completa a obra, parece que Banarasidas
reunia os amigos e familiares e lia trechos de sua poesia, relembrando a todos de momentos
de sua vida para quem quisesse ouvir. Afinal de contas, para quê alguém
escreveria sua biografia se não fosse para ler para os amigos durante o
churrasco (de cenoura? de alface?) do fim de semana? Esses jainistas... (pra
ser sincero, toda vez que eu esbarro ou penso na palavra jainismo, não consigo
evitar de lembrar da filha do “Sueco” na Pastoral Americana, aquela vaca sagrada.).
A tradução - excelente, por sinal - é de Rohini Chowdury, famosa tradutora de obras indianas e escritora de livros infantis. O prefácio do sábio Professor Doutor Rupert Snell, da Universidade do Texas em Austin, é uma obra em si: esclarecedora e contagiante. O Professor Snell também é o autor dos guias de hindi "Get Started in Hindi", "Teach Yourself Hindi", "Hindi Conversation" e outros. Para quem gosta de se aventurar pelo mundo das línguas, "Teach Yourself Hindi" é pura diversão.
A hundred and ten years Cento e dez anos é
Is the span of man's life. A duração da vida do
homem.
In Samvat 1698, Em Samvat 1698 (1641),
Banarasi's life is at
the midpoint. A vida de
Banarasi se encontra na metade.*
Depois de finalizar sua biografia poética e lê-la para seus chegados algumas vezes, ao longo de dois anos, eis que Banarasidas vem
a falecer. Quem diria. O homem que foi o pioneiro das biografias indianas, que
compôs sua história com alta poesia e que dizia ter feito isso para registrar os
eventos até a metade de sua trajetória, morre, aos 57 anos de idade. Uma pena. Tivesse vivido mais alguns anos teria visto o Taj Mahal pronto. A grande
ironia disso tudo é que sua “meia história” acaba se tornando sua “história
completa”.
*(Todas as traduções são minhas e do inglês)
*(Todas as traduções são minhas e do inglês)
Ricardo M. 2017/Fev/05
(lido em inglês)
Gostei da dica de leitura e da sua resenha, alias o blog está muito bem feito, parabéns!
ResponderExcluirOi, Heloisa!
ExcluirMuito obrigado!
Pois é, fico intrigado por não termos mais acesso a obras asiáticas, fora o cânone religioso. Daí partimos, Filipe e eu, rumo ao desconhecido, lendo romances indianos, turcos, iranianos, e o que mais surge pela frente.
Seguimos aqui, lendo e resenhando para leitores interessados e curiosos como você ;)
Se cuida!
Este comentário foi removido pelo autor.
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