Uma vida cor de Rosa
A vida de um
escritor não é fácil. Há quem pense que escrever livros é uma tarefa que custa
algum trabalho e algum esforço, porém que traz muitos frutos – leia-se
dinheiro. Isso seria por causa das obras modernas que estamos acostumados a
ouvir falar por aí e a ver sempre dispostas nas prateleiras das melhores
livrarias. Basta uma boa olhada nessas mesmas livrarias para percebermos que o
número de escritores iniciantes vem crescendo a cada ano. Também pudera, ainda
que as chances de sucesso sejam ínfimas, quem não gostaria de ter o nome
imortalizado numa capa de livro ou – se a sorte ajudar – popularizado
por artigos de jornal e quem sabe até uma pequena divulgação na tela da TV?
O que poucos sabem
é que um livro custa muito mais tempo de pesquisa do que de escrita. Um livro
bom, claro. Livros de qualidade, livros com enredos e personagens que vão ficar
na sua memória mesmo anos depois de lidos, livros que mereçam ser chamados de
grande literatura, imortais: esses são a meta raramente atingida por homens e
mulheres que se empenham em demonstrar através de papel e tinta um universo
imenso e minúsculo ao mesmo tempo, um microcosmo do tamanho do ser humano.
É o caso de O Nome da Rosa, romance de estréia de Umberto Eco, que tinha quarenta e oito anos de idade
quando o publicou.
O Nome da Rosa
conta a história de dois religiosos – um frei franciscano de origem britânica e
um noviço beneditino de origem austríaca –, que um pouco antes do inverno de
1327 chegam a uma abadia franciscana nos Apeninos setentrionais italianos. A
abadia é famosa por sua extensa biblioteca, recheada de importantes e raras
obras, que porém possui estritas normas de acesso. O frei, Guilherme de
Baskerville, e o noviço, Adso de Melk, precisam organizar uma reunião entre os
delegados do papa João XXII e os líderes da ordem franciscana, onde se
realizará uma discussão sobre a suposta heresia da pobreza apostólica, uma
doutrina promovida por uma ramificação dos franciscanos, os ditos espirituais. A tarefa já complicada fica
ameaçada por uma série de mortes dentro dos muros da abadia que os monges
supersticiosos – ouvindo as instâncias de um velho monge e ex-bibliotecário
chamado Jorge de Burgos – creem ser iguais a algumas passagens do livro do
apocalipse.
Guilherme e Adso,
ignorando em muitos momentos as normas da abadia e principalmente da
biblioteca, procuram solucionar o mistério dos assassinatos e acabam
descobrindo que tudo parece girar em torno da existência de um livro, obra esta
que parece estar matando aqueles que o possuem.
A narrativa é
permeada pelos mais diversos temas e listá-los aqui só deixaria mais confuso o
que já é por demais complicado. Basta dizer, resumidamente, que Guilherme de
Baskerville encarna ambos Guilherme (William) de Ockham, o criador da “navalha
de Ockham”, e o personagem mais famoso de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes
(Baskerville, como em O Cão dos Baskerville); Adso de Melk, seu fiel discípulo,
encarna o Watson de Sherlock Holmes enquanto o Melk de seu nome serve para
lembrar o leitor da abadia de Melk, famosa por sua biblioteca; o velho monge
Jorge de Burgos é uma homenagem do autor a Jorge Luís Borges, que muito lhe
influenciou na carreira, e que devotou sua vida aos livros e ficou cego no fim
da vida, também incorpora a devoção religiosa, contrapondo-se a Guilherme, que
vem representar a metodologia cartesiana – ainda que pré-Descartes – e o
raciocínio lógico; temos também naquele tempo o tema da severidade religiosa
versus a graça, o riso (teria Jesus rido alguma vez em sua vida?); a posse e a
riqueza versus o desprendimento material (Jesus era proprietário de alguma
coisa? E os apóstolos? Possuíam algo?); a pureza do espírito contra as máculas
do corpo, especificamente, a vida monástica e o celibato contra o prazer carnal
(afinal, quem é a tal da Rosa do título do livro?). E mais. Muitos mais.
Descrevendo uma
trama labiríntica como a biblioteca da abadia, Umberto Eco traça um retrato
fiel e plausível do dia a dia em uma sociedade religiosa do século XIV.
Utilizando seus profundos conhecimentos como medievalista, o autor vai contando
detalhadamente as ações malignas e motivações do assassino ao mesmo tempo que
assinala os processos dedutivos do detetive Guilherme de Baskerville e seu fiel
aprendiz.
A leitura não é
simples. O Nome da Rosa não é fácil. Nem ao menos é confortável. Trata-se
de uma obra que precisa ser lida com cuidado e com dedicação, com vagar e
esmero. Eco simplesmente deixou intraduzidas todas as passagens em latim. E há
dezenas de passagens em latim ao longo do texto. Em entrevistas, costuma dizer
que “Se a missa católica foi rezada em latim durante séculos sem que ninguém
entendesse nada, então por que motivo eu tenho que explicar o que está escrito
ali?” A descrição de paisagens, pessoas e contexto histórico das primeiras cem
páginas são exaustivas. Eco diz que “Assim como um noviço, meus leitores precisam passar por uma iniciação para
que possam entender o que vem mais tarde e também para que possam se acostumar
com o ritmo da obra.” Verdade seja dita, Eco não escreve para os apressados e
muito menos para os superficiais.
Finda a leitura,
experimentamos o alívio mesclado com o sofrimento do fim da epopeia de sete
dias nos alpes italianos. Os personagens cativantes dão seus adeuses e seguem
suas jornadas. Fica na boca o sabor agri-doce do final feliz que não é feliz e
do mistério solucionado tarde demais. Fica no peito uma dor que não dói, uma
tristeza gostosa e uma lembrança que nem ao menos é nossa.
Umberto Eco já era
professor universitário e autor de vários livros de semiótica, sua área de
especialização. Como diz Dante, “já passara da metade do caminho da nossa vida”
e já estava casado. Bem humorado, disse que “Naquela idade só se pode fazer
duas coisas para espantar o tédio da vida: arranjar uma menina nova e fugir de
casa ou escrever um livro. Minha esposa preferiu a segunda opção.” Até aquele
momento, quando decidiu expor suas idéias por escrito, onze anos de pesquisas
haviam se passado. Daí em diante foram dois anos de escrita. Eco esperou o
momento certo para começar sua carreira como escritor e a oportunidade exata
para publicar suas idéias.
Grazie, Umberto.
Ricardo M., 10/09/2015 (lido em português e italiano)
hahaha, meu Deus.. se Eco lêsse esse texto ficaria emocionado. Parabéns Ricardo M., indicando seu site em 3..2.. (quer dizer, um pouco mais que isso).
ResponderExcluirOi, Yara!
ResponderExcluirMuito obrigado pelo elogio. A verdade é que Eco merece tudo do bom e do melhor pelo que fez pela literatura contemporânea. É um verdadeiro herói.
Agradeço a sua vinda e não deixe de nos visitar!
Abraços,
Ricardo M.
Linda resenha! Fiquei com vontade de ler, apesar de a leitura não ser fácil. Parabéns pelo Blog!
ResponderExcluirO meu:
http://saberes-literarios.blogspot.com.br/