Partidas de tênis, drogas e Netflix
Há uma certa
agitação no ar, um pouco de ansiedade e muita expectativa com os vinte anos de
lançamento de Infinite Jest. Agitação
por conta de fãs de carteirinha da obra, ansiedade por conta de novos leitores
aficionados pela história e expectativa por conta dos que estão por se
aventurar naquelas terras ainda desconhecidas.
Infinite Jest, com o título mais do que
adequado de Graça Infinita no Brasil,
é, a história de um garoto, Hal Incandenza, um jogador de tênis. Porém, quem já
leu sabe – e deve estar incomodado com o simplismo –, não é só isso. Não
somente não é só isto, como também é muito mais, tanto mais que nem ao menos se
sabe por onde começar.
Tentemos, pois.
A obra gira em torno do protagonista, Hal
Incandenza, o mais jovem membro da família Incandenza, um garoto talentoso
e muito inteligente, mas que não tem muita segurança sobre suas habilidades. E
de seu estado de saúde mental também. Ele possui uma memória fotográfica e
memorizou todo o Oxford English Dictionary (como alguém no Brasil memorizar
todo o Houaiss). Parte da trama do livro fica por conta da busca dos assassinos
de cadeiras de rodas pela cópia original do cartucho intitulado Infinite Jest. No livro, Graça Infinita
é um dos filmes produzidos pelo pai de Hal, James Incandenza, cineasta e
fundador da Academia de Tênis de Enfield. O filme é tão interessante e
divertido que seus espectadores perdem o interesse em tudo mais e seguem
assistindo o filme, ininterruptamente, até morrerem, logo sendo considerado a
forma de entretenimento perfeita. Separatistas da região do Quebec, no Canadá,
visam utilizar o filme para causar atos de terrorismo nos Estados Unidos,
lançando no mercado cópias do tal filme que mata. Boa parte da ação também acontece na Casa
Ennet para a Recuperação de Viciados em Álcool e Drogas, a Ennet house onde
Joelle Van Dyne, chamada “A Garota Mais Bonita de Todos os Tempos” e também
atriz participante do filme Graça Infinita, está se tratando por abuso de
substâncias tóxicas. E como isso tudo se encaixa numa história só?
Sendo um romance pós-modernista – sabe,
né? Aquilo de narrativa fragmentada, paradoxo, narrador no qual não se pode
confiar e tal – Graça Infinita conta com as marcantes descrições psicológicas
de seus personagens para se manter coeso e, em vários casos durante as mais de
mil páginas do livro, conta com o surreal para manter o interesse do leitor.
David Foster Wallace se utiliza, em doses cavalares, de jocosidade (daí o jest do Infinite Jest), ironia e humor negro.
Dentro do reino de Graça Infinita, relatos anedóticos improváveis, porém
passíveis de riso, servem de introdução para histórias hilárias sobre a vida
cotidiana e suas desgraças, que levam os leitores às gargalhadas, por mais
hediondas e macabras que soem mencionadas em tom sério. Quase todo o livro é
escrito com um tom melancólico que vai ficando mais ou menos aparente, dependendo
da ação. Talvez resida aí a sua grandeza: Graça Infinita é uma obra mestra e,
dependendo de como é lido, pode ser uma fonte de regozijo para muitos e de
tristeza para outros tantos.
E isto não é tudo.
Há quem diga que o livro todo é uma grande
exibição de conhecimento do autor, David Foster Wallace. Provavelmente não é o
caso, mas, ainda que fosse, não haveria motivos para reclamações. Graça Infinita é mais do que um manual: é um
verdadeiro compêndio sobre tênis – faz sentido, já que praticamente todos os
personagens de menor idade são estudantes da Academia de Tênis de Enfield –,
estudos sobre a mídia, sobre o cinema e artes visuais, vícios – e não apenas
por drogas –, linguística, ciência, tecnologia, relações internacionais e
esportes em geral. E tudo aplicado ao texto de forma natural, claro, pois
ninguém quer uma descrição de como funcionam lentes de câmeras no meio da narrativa.
A não ser que isso tenha ou vá ter alguma função mais tarde.
Há quem também diga que o autor profetizou
muitas coisas com este livro, mas, méh, é preciso ser muito bonzinho pra
aceitar o que ele escreveu como profecia. Um dos casos: a expansão da internet,
com o uso de teleconferência (“FaceTime”) e o Netflix. Os personagens mais
jovens do livro se utilizam muito de “telefonemas com imagens” e assistem
filmes fora da programação da TV o tempo todo. Sejamos sinceros: ver a internet
crescendo e expandindo em 1996 talvez não fosse algum realmente difícil. Talvez
fosse necessário um bocado de imaginação, mas não há nada de profético nisso.
Além disso, os filmes e demais programas que os personagens assistem aparecem
na forma de cartuchos, que foram substituídos pelos CDs bem na época do
lançamento do livro.
Graça Infinita é uma obra coesa e fechada
em si mesma, densa, múltipla, inteligente, engraçada, ensurdecedora, fria,
triste e brutal, que não necessita de nenhum conhecimento do mundo exterior
para ser degustada. Trata-se de uma desafiadora quantidade de páginas – sem
falar que as mais de duzentas notas explicativas são parte essencial da trama e
não devem ser ignoradas –, com a incitante quantidade de mais de quinhentas e
cinquenta mil palavras, das quais cerca de vinte mil foram criadas por Wallace,
que levou cerca de seis anos – talvez mais – para ser composto e lançado ao
público.
É um dos livros publicados nos últimos
trinta anos que vem resistindo bem à passagem do tempo e ganhando admiradores em
muitos países. Esqueça tamanho. Ele ainda é menor do que o Parallel Stories do Péter Nádas e bem menor do que o The Instructions do Adam Levine. Graça Infinita merece muito ser lido. Não é uma leitura simples
e com certeza não será uma leitura rápida, mas certamente será uma leitura marcante.
Ricardo M. 20/mar/2016 (lido em inglês)
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