Obsessão saudável ou... loucura?
Faz parte do
egoísmo nosso de cada dia pensar que somente pessoas especializadas em algum
determinado serviço podem executá-lo bem. Há exceções, claro, mas comumente
sentimos um certo desassossego ao ver pessoas com dois trabalhos muito diferentes
entre si. Carlos Drummond de Andrade era funcionário público e poeta; Bernhard
Schlink é advogado e escritor; Guimarães Rosa era diplomata e escritor; e a
lista segue, bem longa. Contudo há algo nas artes que faz com que as associemos como
frutos diferentes da mesma árvore. Por isso, não deveria causar desconforto que
um músico e restaurador de instrumentos musicais tenha produzido romances. E dentre eles, um belíssimo romance.
Paolo Maurensig,
depois de passar por uma infinidade de experiências com diversas ocupações,
decidiu empunhar uma pena e escrever romances. Seu primeiro “A Variante Lüneburg”
(Companhia das Letras, 1994) fez um certo sucesso comercial e ajudou a
popularizar o nome do escritor na Itália e arredores. Porém foi em 1996, com o
lançamento de “Canone Inverso” (ainda inédito no Brasil) que Maurensig atingiu
sucesso no mundo todo, um sucesso modesto mas estável.
O personagem
central de Canone Inverso é um
violino antigo, um instrumento de fino trato, com uma marca inconfundível: o
desenho de uma pequena cabeça humana no seu corpo, uma marca que vai ajudar a
reconhecer o violino durante a leitura. A trama é um tanto quanto complicada,
mas não excessivamente.
Um homem anônimo
compra o dito violino em um leilão em Londres por uma quantia razoavelmente
alta. No dia seguinte, um outro homem aparece no hotel do anônimo e pede para
ver o violino. O comprador anônimo permite que o homem veja o violino, se
emocionando ao relembrar acontecimentos do
passado. O homem então começa a narrar ao anônimo um encontro que
teve com um músico itinerante em Viena, anos antes. O músico itinerante –
chamado Jenő Varga –, um tipo de cigano de um vilarejo
húngaro, é um prodigioso violinista. E Deste ponto em diante somos arremessados
para dentro do relato da vida de Jenő. A estrutura do romance é como o sistema de Matrioshkas, as bonequinhas russas que
ficam uma dentro da outra e dentro da outra e dentro da outra: temos um plano
inicial – o agora, com o anônimo que
acabou de comprar o violino e é visitado pelo outro homem –, passando para o
plano onde o homem que visita o anônimo conta a história de como conheceu esse
excelente e excêntrico violinista num bar de Viena, para a seguir vermos os
acontecimentos pelos olhos do próprio Jenő Varga – sua infância, seus estudos
no prestigioso porém severo Collegium Musicum, seu amor imutável e distante pela solista
Sophie Hirschbaum e sua amizade pelo colega Kuno Blau. O livro, em suas
duzentas páginas trata de temas como a imortalidade e a busca pela excelência
na arte. No final – um tanto quanto brusco, diga-se de passagem – somos
expostos a uma reviravolta surpreendente e uma conclusão um tanto quanto
inesperada.
Paolo Maurensig poderia ser um
músico que também é um escritor, mas ao que tudo indica, ele está mais para um
escritor que também é músico. Seus temas não se prendem à música. A variante Lüneburg, por exemplo, é
sobre o xadrez e tudo o que a paixão por este jogo pode acarretar.
Canone Inverso recebeu sua versão
cinematográfica pelas mãos do também italiano Ricky Tognazzi. O filme foi
lançado em 2000 e não é de todo ruim (recebeu vários prêmios),
apenas não segue quase nada descrito no livro. Trilha sonora do über-fantástico
Ennio Morricone e Gabriel Byrne no elenco. O filme se passa na Tchecoslováquia
(ainda que no livro boa parte da ação se passe na Áustria) e a trama do filme
gira em torno da Primavera de Praga e do distinto violino. Ou pelo menos deveria ser assim. O
filme foca na relação entre Jenő e Sophie – Ah, a sétima arte! –, com
destaque para cenas de amor flamejante entre os dois. Lembra bastante as três porcarias que fizeram "baseadas" no Solaris,
do Lem, onde os diretores se preocuparam tanto em mostrar a relação entre Kris
e Harey que não se prestaram a mostrar nada mais. Não é à toa que quem viu os
filmes depois de ter lido o livro não entendeu por que motivo eles tem o mesmo
nome.
O Livro deixa uma agradável sensação
de aprendizado e deixa também temas para discussão interna (obsessão versus obstinação, imortalidade versus
vida simples, amizade versus
competição, sonho versus realidade),
sem falar que sua leitura é prazerosa e interessante, mesmo nos momentos mais
intrincados da narrativa. O tom brando e um tanto quanto melancólico com que a
história do século XX segundo um violinista húngaro, bem como sua solidão, que
vai sendo transmitida aos demais personagens durante a leitura, ecoa a solidão
de todo o ser humano, mesmo a mais profunda, e nos atinge.
Um belo livro que merece seu lugar
nas livrarias do Brasil.
Ricardo
M. 09/Abril/2016 (lido em inglês, espiado em italiano)
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